Parado à esquina das ruas João Alfredo e Lopo Gonçalves, Raul Luruz Galeano Júnior contemplava com curiosidade a movimentação no local:
— Tem até criança. Nunca tinha visto criança aqui.
Por pouco mais de duas horas, na tarde deste sábado (30), a via boêmia onde o técnico em enfermagem vive há cinco anos conheceu uma realidade diferente daquela a que os moradores se acostumaram a ver nos últimos anos. Crianças, adultos e personagens do universo infantil circulando com bicicletas e patinetes, música ao vivo e acesso restrito para veículos marcaram o pontapé inicial do projeto de "rua completa", que promete revitalizar a via, com foco no estímulo ao uso diurno do local.
Uma nova sinalização pintada no cruzamento da João Alfredo com a Lopo Gonçalves, na Cidade Baixa, servirá de aperitivo à comunidade pelos próximos meses. Além da instalação de uma rotatória, a circulação de carros ficou restrita a duas pistas, uma em cada sentido. Foram pintadas faixas de segurança em três dos quatro eixos do cruzamento, e o espaço para a circulação de pedestres foi ampliado com uma pintura em verde, uma extensão simbólica do calçamento.
— Estamos ouvindo a comunidade para saber o que ela quer de uma rua completa. Hoje, a João Alfredo é um deserto durante o dia: não tem árvores, as calçadas são estreitas, os comércios não abrem. Acreditamos que se tiver um melhor uso nesses horários, isso vai se refletir à noite — diz o diretor-presidente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), Fabio Berwanger.
Em fase de elaboração, a proposta da prefeitura prevê, no futuro, a instalação de uma infraestrutura física, com calçadas mais largas, arborização da via e instalação de parklets. Chamado de Pátio Cultural, o evento realizado neste sábado teve como objetivo apresentar a ideia à comunidade e ouvir sugestões — além de painéis com perguntas, havia entrevistadores fazendo pesquisa e dirigentes da EPTC explicando o projeto.
Palco de tensões entre moradores e frequentadores noturnos nos últimos anos, a João Alfredo passou por eventos traumáticos no começo do ano, quando foi cenário de uma execução. As cicatrizes na comunidade são evidentes. Enquanto boa parte dos moradores mostravam-se abertos a mudanças, um grupo mais desconfiado reuniu-se em torno de Berwanger e do engenheiro João Paulo Joaquim, gerente de planejamento de trânsito e circulação da EPTC. Mostravam-se preocupados com um possível incremento da já intensa vida noturna no local.
— A nossa preocupação é um estabelecimento encher de mesas na rua e ficar até as duas da madrugada. O projeto em si é bacana: realmente tem de ter um comércio mais misto. Mas tem de haver fiscalização, regras de funcionamento — diz Antonio Verti, 47 anos.
Moradora da João Alfredo há mais de 30 anos, Dayane Nepomuceno tem uma visão diferente. Ela acredita que o movimento, ainda que eventualmente passe dos limites, melhora a sensação de segurança. Mas admite que as intervenções na via costumam dividir opiniões.
— Acho que tem moradores que não vão aprovar, mas, para mim, é ótimo. Quando vim morar aqui, 32 anos atrás, tinha medo de sair porque não tinha ninguém na rua. Prefiro o movimento do que o deserto. E melhorar o comércio durante o dia valorizaria a rua — acrescenta.
Nas próximas semanas, a prefeitura deve dar continuidade às mudanças na via, estendendo a sinalização hoje restrita ao cruzamento com a Lopo Gonçalves por toda a rua. Também serão compiladas as sugestões dos moradores para a elaboração do projeto definitivo, que deve ser concluído ainda neste ano. O objetivo é licitar a obra em 2020.
Porto Alegre foi a terceira cidade brasileira a implantar, em fase de testes, a iniciativa, uma parceria da WRI Brasil com prefeitura de 15 cidades. São Paulo e Juiz de Fora já elaboraram suas propostas. Salvador resolveu pular a etapa probatória e dar início as obras na via escolhida.
— Aqui a prefeitura optou por fazer o que chamamos de urbanismo tático, que é essa fase intermediária em que se pode fazer medições e identificar possíveis melhorias a serem feitas no projeto. A ideia é transformar a rua em um espaço de vivência, não só de passagem. É mostrar o potencial humano dela — destaca Ariadne Samios, analista de mobilidade ativa da WRI Brasil.