Contou com uma dose extra de fé e abnegação um dos mais tradicionais eventos religiosos de Porto Alegre nesta sexta-feira (30). Sem dinheiro da prefeitura, a 59ª edição da Via Sacra do Morro da Cruz só foi possível pela participação voluntária de três dos cerca de 30 atores profissionais que costumavam participar das atividades e de membros da comunidade, que assumiram o papel de apóstolos e romanos na procissão que percorreu 1,5 quilômetro entre o Santuário São José do Murialdo e o topo do morro, no bairro Partenon.
De anos anteriores, apenas o figurino de parte do elenco se repetiu. A falta de verba para o aparato de luz e som e para os palcos onde ocorriam as encenações da condenação e de outros momentos emblemáticos da Via Sacra eliminou a parte artística neste ano.
A caminhada teve início por volta das 16h, quando Jesus, interpretado há quase quatro décadas pelo vereador Aldacir Oliboni (PT), deixou as dependências da igreja já carregando a cruz e sendo açoitado pelos romanos — estes tradicionalmente interpretados por moradores do Morro da Cruz. Encabeçando um dos cordões de apóstolos, Guilherme Soares, 31 anos, não conteve as lágrimas no começo do percurso. Morador de Viamão, ele foi um dos fiéis convocados a participarem de forma voluntária da encenação.
— Cheguei no final da missa porque me confundi com os horários dos ônibus. Mal tinha comido a hóstia quando um homem vestido apóstolo me chamou e disse: "Estou precisando de um apóstolo". Eu disse: "Senhor! Foi um presente de Deus". Hoje é uma data especial, muito forte para quem tem fé — disse o trabalhador autônomo, que pegou gosto pela atuação: quer integrar o elenco da procissão novamente no próximo ano.
A fé também motivou a participação voluntária de artistas profissionais na edição deste ano. Intérprete de Pôncio Pilatos por 15 vezes, Jairo Klein foi um dos atores que decidiram juntar-se à caminhada. Desta vez vestido como apóstolo, ele acompanhou o trajeto auxiliando na organização dos novatos.
— A gente veio para apoiar, na fé e na resistência, para que a Via Sacra continue, porque é uma tradição do Morro da Cruz — explicou.
Outros ícones do universo religioso apareceram de forma espontânea na Via Sacra. Do lado de fora da corda, uma Nossa Senhora das Graças improvisada acompanhava resignada o trajeto de chibatadas no filho da personagem à qual fazia alusão. Apesar de coincidir com o arranjo feito para viabilizar o evento, a roupa que Arlete da Silva Dias vestia tinha um significado além do altruísmo de quem participava da encenação. O traje branco emprestado pela igreja sob o manto improvisado com um lençol azul era parte do pagamento por uma graça atendida.
— Um mês atrás, a minha mãe teve um AVC e ficou cinco dias na UTI. O médico desenganou ela: disse que ela não ia resistir. Fiz uma promessa para que, se ela sobrevivesse sem sequelas, eu ia vir vestida de Nossa Senhora das Graças por sete anos — conta a recepcionista, que frequenta a procissão desde a infância.
O caráter religioso coexistiu com o tom político ao final do trajeto de quase duas horas, no topo do morro. Sobre um palco montado para a representação da crucificação e ressurreição de Cristo — única estrutura subsidiada pela Secretaria Municipal de Cultura —, o organizador do evento, Camilo De Lélis, assumiu a palavra destacando a falta de cooperação da prefeitura e pedindo auxílio para a realização da edição comemorativa de 60 anos da procissão, em 2019.
— Que o prefeito Nelson Marchezan, que está nos ouvindo em algum lugar da consciência dele, possa colaborar para que, no ano que vem, possamos realizar a 60ª edição da Via Sacra com tudo o que ela tem que ter — encerrou o organizador, cujo discurso foi seguido de gritos de "fora Marchezan" entoados por parte da comunidade.