Porto Alegre conta há três décadas com uma legislação destinada a evitar o desabamento das mais de 7 mil marquises cadastradas na cidade. Mas, até o momento, as regras não foram suficientes para fazer frente à lei da gravidade.
A exigência de vistorias regulares não foi capaz de interromper a queda de blocos de concreto nos últimos anos, como o que despencou na Avenida Alberto Bins em outubro de 2017. Desde implantadas as normas atuais, pelo menos cinco marquises ou fachadas ruíram na Capital. As razões: a falta de uma estrutura maior de fiscalização, a desatualização do texto da lei e a superficialidade das vistorias.
A legislação atual é uma das mais antigas do país — foi implantada após a trágica queda da marquise das lojas Arapuã, no Centro, em 1988, quando nove pessoas morreram. A norma exige a apresentação de um laudo técnico, assinado por engenheiro ou arquiteto, garantindo a segurança da estrutura a cada três anos. Em teoria, nenhum pedaço de concreto deveria se desprender na cidade. A realidade é bem diferente.
— Mesmo com a lei, as marquises seguiram caindo, e vão continuar despencando — acredita o professor de Patologia das Construções da Unisinos, Bernardo Tutikian.
Uma das razões da insegurança arquitetônica é a falta de uma estrutura mais robusta de fiscalização no município para verificar se um determinado prédio conta com laudo e se o documento condiz com a situação real. A cidade conta hoje com quatro engenheiros e dois arquitetos capazes de fazer vistorias esporádicas. Teria de contar com algo entre 10 e 15 técnicos para realizar fiscalizações de rotina e por amostragem.
É difícil para os fiscais até mesmo se deslocar pela cidade: a supervisão de controle da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Smams) dispõe de cinco carros próprios, mas todos estão estragados sem previsão de conserto. O jeito é contar com veículos alugados compartilhados com outros departamentos e, por isso, nem sempre disponíveis.
— Essa questão da fiscalização efetiva, de monitorar as marquises, não existe. Atendemos algumas denúncias que chegam — admite o supervisor de Controle da Smams, Paulo André Machado.
Sem um monitoramento mais rígido, a cada cinco anos, mais ou menos, é publicado um edital exigindo o cumprimento da lei. Todos os responsáveis por imóveis com marquises são notificados para apresentar laudos em um prazo de 60 dias.
— Vemos quem apresentou o laudo, ou não, e impomos multa de R$ 1.948 para quem não entrega — diz Machado.
Aí entra outro obstáculo: a falta de uma atualização da lei dos anos 1980 mantém o valor da multa relativamente baixo e, até o ano passado, a falta de pagamento nem sequer resultava em punição. O regramento administrativo das multas agora permite que os inadimplentes sejam encaminhados à Justiça, que pode impor valor maiores, multas diárias ou até determinar demolições.
— A lei de 1988 estabelecia multa de 50 OTNs (Obrigações do Tesouro Nacional), índice que não é mais usado. A Fazenda Municipal atualizou esse valor para Unidades Financeiras Municipais, que fica em R$ 1,9 mil. A lei deveria ser refeita — acredita Machado.
Qualidade dos laudos é questionada
Mesmo quando um imóvel está com o laudo de segurança da marquise em dia, nem sempre há garantia de que a estrutura está protegida contra quedas. Engenheiros afirmam que há documentos produzidos sem o devido cuidado técnico capazes de mascarar problemas em vez de revelá-los.
— A lei criou uma indústria de laudos superficiais, baseados principalmente em observação visual, o que pouco faz para evitar esses acidentes. Claro que nem todos os profissionais agem assim, mas isso acontece — afirma o professor da Unisinos Bernardo Tutikian.
Diretor do Sindicato dos Engenheiros do Estado (Senge) e conselheiro do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA), Fernando Martins Pereira da Silva concorda com a fragilidade técnica das avaliações:
— A lei criou um laudo padronizado, sem exigência de ensaios complementares. Alguns profissionais cobram valores bem mais baixos, mas fazem laudos pouco aprofundados.
Segundo Tutikian, nem sempre um problema estrutural é fácil de ser observado. A detecção de falhas exige técnicos bem treinados e, por vezes, equipamentos e testes complementares, mas isso também costuma resultar em preços mais elevados.
— Aí há outro problema. O síndico ou proprietário do imóvel acaba escolhendo o profissional que cobra menos, e faz um laudo superficial. Há pessoas cobrando R$ 500, R$ 600 por esse serviço, quando um trabalho bem feito costuma exigir bem mais — afirma Tutikian.
O supervisor de Controle da Smams, Paulo André Machado, defende o modelo de documentação exigido no município:
— Nosso laudo é padrão e exige informações mínimas e suficientes para garantir a estabilidade da estrutura. Admitimos que possa ser anexado um laudo mais completo.
Os principais acidentes com marquises e fachadas na Capital
11 de agosto de 1986
Um bancário morreu ao ser atingido por escombros de uma marquise do Lloyds Bank International, na Rua General Câmara, enquanto se dirigia ao trabalho. A tragédia só não foi maior porque havia pouco movimento de pessoas no horário.
6 de outubro de 1988
Uma semana antes do feriado de Dia das Crianças, uma marquise de 16 metros de comprimento e um de largura da Loja Arapuã – na época, uma das maiores redes varejista de eletrodomésticos do país – desabou na Rua Doutor Flores, atingindo diversas pessoas que estavam paradas ou transitando pela calçada. Nove pessoas morreram.
23 de novembro de 2000
No fim da tarde, uma marquise de 40 metros se desprendeu da fachada do edifício Montecooper Bussines Center, na Rua Chaves Barcellos. Duas pessoas ficaram feridas.
1º de dezembro de 2006
Uma jovem de 18 anos morreu após ser atingida por parte da estrutura de um prédio em demolição na Avenida João Pessoa. A universitária ficou sob 1,5 tonelada de escombros.
27 de dezembro de 2007
A marquise de um prédio localizado na Rua dos Andradas, no centro de Porto Alegre, desabou durante a madrugada. Em razão do horário, ninguém ficou ferido.
21 de julho de 2016
A queda de uma estrutura na Rua Annes Dias, no Centro, resultou na morte de uma mulher de 34 anos. Uma segunda pessoa ficou ferida.
28 de outubro de 2017
A fachada de um prédio desabou na Avenida Alberto Bins, no Centro. Quatro carros estacionados no local foram atingidos, mas ninguém ficou ferido.