Correção: a foto de Eduardo de 2016 foi feita em Florianópolis, e não em Porto Alegre, como identificado na legenda até as 21h45min. O texto já foi corrigido.
No 105º dia de recuperação, deitado no leito do Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, o estudante colombiano Eduardo de la Hoz recebeu a notícia que esperava havia meses: havia passado na concorrida seleção para uma bolsa na Oxford Committee for Famine Relief (Oxfam), ONG britânica que busca soluções para a pobreza e a injustiça no mundo. Quando saísse do hospital, estudaria na Suécia. Mas, subitamente, a alegria com que recebera a boa nova foi neutralizada pelo choque de realidade. Vítima de dois tiros de revólver calibre 38, em 16 de fevereiro de 2017, em uma briga de condomínio, Eduardo lembrou o que, naquele momento, parecia um empecilho para viajar ao norte europeu: estava paraplégico.
– Não quero mais a bolsa, estou sem minhas pernas – desabafou.
– Cara, em nenhum edital aparece algo sobre ser deficiente. Para a academia, isso é irrelevante. O mais importante são tuas ideias – retrucou o irmão Hector, 32 anos.
A bolsa era a consagração acadêmica, uma homenagem ao pai, Osvaldo, médico e professor universitário, e à mãe, María del Carmen, advogada e assistente social, ambos vivendo em Barranquilla, cidade de 2 milhões de habitantes localizada a 5,2 mil quilômetros de Porto Alegre. Terceiro dos quatro filhos do casal, Eduardo, desde pequeno, mostrava interesse por questões sociais. No colégio de padres jesuítas San José, o mesmo onde estudou o escritor Gabriel García Márquez, o menino participava de mesas sobre direitos humanos. Frequentava uma escola de dança e teatro – certa vez, personificou o general Francisco de Paula Santander, um dos libertadores da América e parceiro de Simón Bolívar. A opção pelo curso de História, aos 17 anos, era um caminho natural.
– Ele sempre soube que a História era sua vida, fazia discursos sobre a política do país – lembra a mãe.
Era um aluno inquieto, com inteligência acima da média. Difícil superar seus argumentos.
– Ele tinha um conhecimento aprofundado sobre a situação da Colômbia. Não era de sair para a rua para protestar; era um cara de estudos. Debatia com profundidade e argumentos – relata a cunhada, Deysy Díaz.
Após concluir a graduação na Universidade Industrial de Santander, em Bucaramanga, Eduardo trabalhou em uma ONG de apoio a populações deslocadas pela guerra civil entre o governo e a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Como pesquisador, queria fazer pós-graduação no Exterior.
– Mestrado na Colômbia é caro. Então ele tentou em universidades do Uruguai e da Argentina. Foi aprovado nas duas. Mas, pelo fato de a gente estar no Brasil, onde as universidades são mais conceituadas do que no restante da América Latina, veio para cá – relata o irmão, com quem Eduardo morou em Florianópolis em 2014.
Depois da temporada na capital catarinense, o rapaz buscou desenvolver sua pesquisa sobre redes de poder no Departamento de História da UFRGS. Foi aprovado, conseguiu bolsa e mudou-se para Porto Alegre em 2015. Na capital gaúcha, os primeiros dias de adaptação foram difíceis. Era frequente comentar com amigos o preconceito com relação à cor e, também, em função de falar outra língua. Comunicava-se bem em português, mas o sotaque carregado entregava na hora de conseguir um apartamento para alugar: tratava-se de um estrangeiro vindo da América Latina.
"As pessoas falavam que estavam procurando alguém mais 'como a gente'", ele chegou a lamentar para um colega.
Foi quando conheceu os publicitários Caio Dorigon, 25 anos, e Diego da Luz, 26. Veio o convite para morar com os novos companheiros no apartamento 405 do condomínio Monte Belo, na Avenida Cristóvão Colombo, na Capital.
Eduardo varava a madrugada na frente do notebook e cercado por livros. De dia, saía de casa apenas para ir à musculação, às aulas do mestrado e ao restaurante universitário (RU) do campus da Saúde da UFRGS. Os três moradores pouco se encontravam. Quando se reuniam na sala, com um pôster dos Rolling Stones e um tonel preto que faz as vezes de mesa, falavam sobre filmes e música. Eduardo gostava de MPB. Assistia a filmes orientais e do Leste Europeu. De vez em quando, abria exceções em seu cardápio cult para Rocky, um Lutador. Não era de frequentar bares. Aos finais de semana, acompanhava as notícias do futebol internacional e de seu time, o Junior, de Barranquilla.
Em novembro de 2016, Eduardo decidiu passar um mês na China. De lá, voltou com uma bicicleta dobrável, seu novo xodó. Passou a pedalar até o RU. Como estudava muito e saía pouco, não era visto no condomínio. Poucos vizinhos sabiam seu nome. Certa vez, uma moradora, ao vê-lo deixando a garagem de bicicleta, questionou:
– Quem tu és?
Eduardo ficou incomodado. Sentiu-se vítima de preconceito. Caio tentou reduzir a tensão, apresentando o inquilino ao subsíndico, o aposentado Cláudio Roberto Bohrer Brandão, 74 anos.
– Esse aqui é o Eduardo, ele mora com a gente, faz mestrado na UFRGS, mas há uma senhora que, toda vez que ele entra, age de forma um pouco racista. Só queria dizer que estamos chateado com essa história. E que ele mora aqui.
– Não dá bola, são pessoas mais conservadoras – ouviu da esposa do subsíndico.
O condomínio Monte Belo, de quatro andares e 24 apartamentos, é, em sua maioria, habitado pelos mesmos moradores há muito tempo. Alguns estão lá há mais de 30 anos. E, aos poucos, Eduardo parecia se sentir melhor entre eles. Menos incomodado, no mínimo. Chegou a mandar uma mensagem à mãe avisando: "Encontrei o meu lugar em Porto Alegre".
Ele até começou a namorar. Oficializou a relação com Paola Ariza, que encontrou durante a Copa do Mundo. Em janeiro de 2017, foi conhecer os pais da jovem, em Foz do Iguaçu (PR). Foi a última vez que ela viu o namorado andar. Oito dias depois do retorno a Porto Alegre, em 16 de fevereiro, faria sua pedalada de rotina, mas não encontrou a bicicleta na garagem. Pelo grupo no WhatsApp, questionou Caio e Diego:
– O que eu faço?
– A gente foi no apartamento do subsíndico, vai lá e fala com ele. Vai que ele resolva – sugeriram os amigos.
O rapaz foi até Brandão, mas ele não estava. Ao descer até a garagem, encontrou-o. Os dois discutiram.
– Ele queria que o condomínio pagasse o valor da bike (que havia sido roubada) – lembra Hector.
– O subsíndico disse que não pagaria. Meu irmão se esquentou. Houve peitamentos.
No meio da confusão, Brandão caiu. Foi quando outro morador, o bombeiro Tiago Lamadril Borges, apareceu armado com um revólver. Ao ver o subsíndico no chão, pensou se tratar de um assalto. Conforme o Boletim de Ocorrência, Borges deu voz de comando para Eduardo permanecer deitado até a chegada da Brigada Militar.
– Mas eu moro aqui! Moro aqui! – identificou-se Eduardo.
Segundo o relato do soldado à polícia, o estudante não teria obedecido. Então Borges disparou dois tiros na região abdominal, que perfuraram intestino, esôfago, pulmão, coluna vertebral, fêmur e bacia. Diego e Caio só ficaram sabendo da tragédia quando chegaram em casa.
– Cheguei umas 23h e vi as coisas dele na sala, achei estranho. À meia-noite, bateu o subsíndico na minha porta – conta Diego.
Ao chegar à emergência do Hospital Cristo Redentor, Eduardo não era Eduardo. Foi tratado como indigente. Só foi identificado como estudante do mestrado da UFRGS depois que Caio e Diego o reconheceram naquela madrugada em que tiveram de perambular por hospitais e buscar telefones de parentes no celular do jovem.
Em depoimento à polícia, Borges alegou legítima defesa: "Ocorre que Eduardo teria sentado no capô de um veículo e colocado as mãos para trás, tirando-as e indo em direção a Tiago", descreve o documento.
A delegada Roberta Bertoldo, titular da 2ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (2ª DHPP), questiona o fato de o bombeiro ter mantido Eduardo no chão, já que ele estava desarmado.
– É uma lástima que tenha acontecido isso. O bombeiro talvez tenha agido sem muita experiência de rua – diz Roberta, que indiciou Borges por tentativa de homicídio doloso (com intenção de matar).
Brandão, que mora há 40 dos seus 74 anos no Monte Belo, se diz constrangido.
– Ele (Eduardo) ficou muito alterado comigo, disse que eu poderia ser um dos ladrões da bicicleta. Isso me deixou incomodado. Senti que ele ia me agredir. Eu estava sozinho, sou um homem velho. Ele me empurrou, e eu caí. Foi quando chegou essa outra pessoa (Borges), e achou que eu estava sendo assaltado – conta o subsíndico.
A versão do próprio Eduardo ninguém sabia até ele acordar do coma, dois meses depois dos tiros. No relato do colombiano consta que o subsíndico teria uma faca – e que teria tentado agredi-lo.
Passado o coma, Eduardo superou a fase inicial do pós-operatório. Completou 29 anos em 4 de julho no leito. Por conta da internação prolongada e por se alimentar pouco, os ferimentos demoravam a cicatrizar. Estava enfraquecido.
Ao saber da notícia, María, a mãe, mudou-se para Porto Alegre. Ficou sentada ao lado do filho no Cristo Redentor por 19 dias. Em um último esforço para fazer Eduardo reagir, apelou para uma música no celular: Eye of the Tiger, tema de Rocky, um Lutador.
– Vamos filho, este é o último round. Levanta!
A vigésima cirurgia, aquela que os médicos esperavam que fosse a derradeira, serviria para fechar uma fístula no intestino. Tecnicamente, a operação foi um sucesso. Mas Eduardo adquiriu uma infecção, que evoluiu para uma sepse (generalizada). Seu corpo já não tinha reservas como no inicio.
Em 4 de setembro, último dia em que Hector conversaria com o irmão, Eduardo contou que, de tanto assistir a Rocky, havia decorado o diálogo entre o boxeador e seu treinador. Em uma cena, o lutador ganha do mestre uma corrente de pescoço com a imagem de um anjo.
– Levántate, hijo, levántate! – repetiu, em espanhol.
E terminou a frase, em inglês, como no filme: Cause Mickey loves you ("Porque Mickey te ama").
Eduardo foi sedado no dia seguinte. Não abriu mais os olhos.
– A partir dali, eu dizia sempre essas palavras: Levántate! – lembra Hector.
Em 24 de setembro, Eduardo morreu. Seu corpo foi levado para Barranquilla, onde foi sepultado quatro dias depois. O bombeiro Tiago Borges mudou-se do condomínio Monte Belo. ZH procurou pelo soldado da BM na última segunda-feira na Estação Floresta do Corpo de Bombeiros, onde ele segue trabalhando. Estava de folga. Por telefone, depois, avisou que não se manifestaria. A defesa de Borges está a cargo dos advogados Taís Martins Lopes e Anderlon Junqueira – os mesmos que representam o subsíndico.
O bombeiro foi denunciado pelo Ministério Público estadual por tentativa de homicídio doloso com duas qualificações: motivo fútil (briga por causa de uma bicicleta) e por ter recusado a possibilidade de defesa do ofendido (Eduardo estava desarmado). Ele deve ir a júri na 2ª Vara Criminal da Capital. O revólver era de sua propriedade.
– Tiago está muito abalado – diz a advogada Taís. – Ele tem porte de arma, saiu para ir à padaria com o revólver. Ao retornar, entrou na garagem e viu a briga. Infelizmente, foi uma fatalidade. Ele jamais imaginou deparar com essa situação. O bombeiro é treinado para salvar vida.
A bolsa que Eduardo conquistou para estudar na Suécia, comemorada naquele 6 de junho no leito do hospital, será preenchida por outro candidato. A bicicleta branca que o rapaz trouxe da China, motivo da tragédia no Monte Belo, nunca foi encontrada.