Se ir ao Mercado Público transporta o porto-alegrense ao passado, entrar no Gambrinus dá direito a assento VIP da viagem no tempo. O restaurante mais antigo de Porto Alegre tem espalhadas por todos os cantos evidências dos seus 128 anos de história, completados neste mês.
Conhecido por iguarias como o bolinho de bacalhau, o Gambrinus mescla na decoração elementos de madeira com azulejos em estilo português. A pintura do teto foi raspada, revelando a sobreposição de camadas de tinta pintadas em várias épocas. Quem seguir até o fim do balcão encontrará uma fotografia ampliada do Mercado Público por volta de 1900. O registro mostra a novas gerações de frequentadores como era o prédio histórico na sua origem, com apenas um andar e o Guaíba quase batendo à porta.
– O restaurante está envolvido com a história do Mercado, as duas coisas se confundem – diz o sócio e administrador João Alberto Cruz de Melo, 39 anos.
O Gambrinus foi fundado em 1889, como uma confraria de alemães. Vindos para trabalhar nas indústrias de siderurgia, os imigrantes solicitaram à Intendência um espaço para encontros festivos. Um casal, os Müller, teria passado a preparar petiscos para o grupo e, mais tarde, a atender o público em geral.
O negócio ainda pertenceria a italianos – os irmãos Finato, nos anos 1930 – até chegar a mãos portuguesas. Antônio Dias de Melo (que morreu em 2009) comprou o ponto em 1964. Seu irmão, João Dias de Melo (falecido em 1988), entraria na sociedade alguns anos depois. Hoje, o estabelecimento é tocado pelos filhos deles e por uma cunhada de Antônio.
Se antes o Gambrinus estava mais para bar, a família Melo transformou-o em um restaurante conceituado. Serve de feijoada a lombinho grelhado, mas os pratos à base de bacalhau – em especial, a salada e o bolinho – são os mais tradicionais. O segredo desse último, afirma João Alberto, é a quantidade de bacalhau – 50% da composição. Além do tempo investido: leva quatro dias da etapa de salgar o peixe até servi-lo.
– Já tentei apressar o processo, mas não fica igual – admite João Alberto.
Nas memórias mais antigas dele, quem fazia essa receita – maravilhosamente bem, destaca – era uma senhora baixinha e magrinha de avental azul. Já falecida, a dona Edith trabalhou três décadas no Gambrinus. Sua forma regrada de trabalho ainda é referência para o administrador, que se esforça para que os quitutes sigam tendo a mesma identidade.
– Eu como esses pratos há 28 anos, acho que guardo ainda a memória do sabor. Pode ser que não seja igual, mas alguma coisa eu tento preservar.
Se dona Edith era a responsável por pilotar as panelas na cozinha, José Carlos Lopes Tavares, o Zezinho, 70 anos, tratava de servir a clientela. O garçom tem 1m59cm de altura e cabelos grisalhos. De cada três frases que fala, pelo menos uma é piada. Ele trabalha há cerca de 40 anos ali, e não quer saber de pendurar as chuteiras.
– Enquanto eu tiver pernas para andar e o sorriso que o cliente merece, eu vou estar aqui – avisa.
Cinco relíquias nas paredes do Gambrinus
O relógio
Além de servir os clientes, o garçom Sérgio Luiz D’Ávila Pereira, 58 anos, tem outra atribuição: é ele quem mantém o tempo passando. O patrão Antônio Melo deu-lhe a incumbência de dar corda no relógio antigo de madeira exposto no restaurante quando começou a trabalhar ali, há 22 anos. Assim que chega ao Mercado Público, ele dá oito voltas para um lado e oito para o outro.
– Não pode dar corda demais, para não arrebentar – explica.
O relógio foi adquirido há mais de 30 anos por João Melo (irmão de Antônio e pai de João Alberto), que o comprou de um amigo.
– Vamos manter o relógio funcionando para que o Gambrinus continue – diz Pereira.
As válvulas de chope
Na mesma parede do relógio, estão pendurados alguns objetos dourados, de serventia conhecida por poucos. Trata-se de antigas válvulas e bombas de chope.
Até a década de 1980, para extrair a bebida, os garçons batiam a rolha do barril e inseriam a válvula – o mais rápido possível para o líquido não jorrar. Depois, bombeavam a peça para transferir a bebida para o copo. Antes de virar decoração, esse equipamento foi substituído por chopeiras elétricas.
– Agora é barbadinha – graceja Zezinho, garçom há 40 anos na casa.
O quadro negro
Um quadro negro com moldura robusta, exposto no topo de uma das janelas do Gambrinus, anuncia o cardápio do dia – de vários anos atrás. A letra das inscrições ainda é do garçom Jorge de Oliveira, popular Vovô, que teve meio século de Gambrinus e faleceu no ano passado. João Alberto explica que, até a década de 1980, o restaurante não tinha cardápio de papel. Diariamente, Vovô baixava o pesado quadro negro e escrevia os pratos do dia com giz molhado. Mesmo com a adoção de cardápios de papel, decidiu-se manter o quadro exposto, como mais um elemento histórico – apesar de desatualizado.
A cadeira de Francisco Alves
Há dezenas de cadeiras de madeira no Gambrinus, mas é difícil não notar uma em especial. Pendurada a mais de dois metros de altura, na quina da parede, está a cadeira de Francisco Alves, cantor carioca falecido na década de 1950.
A homenagem ao intérprete de Cadeira Vazia nasceu a alguns metros dali, no Restaurante Treviso, reduto da boemia na Capital. Quando vinha a Porto Alegre se apresentar, Chico Alves era visto ali – às vezes, acompanhado de nomes como Lupicínio Rodrigues. Quando ele morreu, em um acidente de carro, o restaurante guardou sua cadeira como lembrança. O Treviso acabou fechando as portas, e o dono da sorveteria que ocuparia o local no Mercado Público decidiu doar a cadeira ao Gambrinus, com o palpite – certeiro – de que ali a história iria se perpetuar.
A pintura revelada na reforma
Uma pintura na parede, revelada durante uma reforma na década de 1990 (acima), foi mantida no centro do restaurante. Além do nome Gambrinus, no registro desgastado está representada a imagem masculina que batiza o restaurante – que em uma versão é tida como a figura mítica que ensinou aos germanos o segredo da fabricação da cerveja, e, em outra, um rei eleito protetor dos cervejeiros. Acredita-se que o desenho tenha sido encomendado pelos fundadores do local, há pelo menos um século.
– Achei o máximo, resgataram parte da história – diz a cliente Maria Cristina Endler.