Afiador de facas, tesouras e alicates, Anastácio Munhoz Correa, 75 anos, morador do Conjunto Habitacional Porto Novo, na Zona Norte de Porto Alegre, jamais imaginou dar autógrafos pela função exercida há mais de quatro décadas. Mas a história do homem que chegou a pedalar 120 quilômetros num único dia em nome do trabalho acabou nas páginas de um livro, assim como a de outros cinco ex-moradores da antiga Vila Dique, comunidade na qual Anastácio viveu durante 30 anos.
Destinada a usuários e profissionais da Gerência de Saúde Comunitária, a obra Caderno dos Saberes, escrita pela médica da família e comunidade da Unidade de Saúde Santíssima Trindade da Gerência de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição (GHC) Maria Amélia Medeiros Mano, em parceria com a docente da Ufrgs Débora Wobeto, foi lançada neste mês. Ela pretende fortalecer a autoestima e a autonomia e, ainda, valorizar as trajetórias da comunidade que começou a ser transferida da antiga Dique em 2009.
— Só fiz o primeiro ano e aprendi a juntar meu nome. Minha vida sempre foi simples, e não esperava virar história. Me senti valorizado na noite dos autógrafos — comenta orgulhoso, o afiador.
No livro, Anastácio recorda os mosquitos, o barro e a casa que estava quase caindo na Vila Dique, e conta como é a lida de afiar facas. Em Porto Alegre, costuma trabalhar apenas nos finais de semana, quando os moradores estão em casa. Quando decide pegar a estrada, coloca um cobertor na garupa e se dispõe a ficar vários dias acampado nas margens das rodovias até chegar ao destino final. Rio Grande, por exemplo, já recebeu a visita do afiador.
— Já fiquei 20 dias fora, afiando pelas praias do Sul do Estado e, outras vezes, nas praias do Litoral Norte. Apesar disso, achava que a minha história era como qualquer outra — fala, Anastácio.
Aprendizado
Maria Amélia explica que as memórias começaram a ser resgatadas em 2015, no início da seleção das seis histórias a serem contadas. Cada uma delas foi indicada por funcionários do posto onde os moradores consultavam. A médica faz questão de incluir os entrevistados como escritores do livro.
— Deste trabalho, fica a importância que estas pessoas têm para a comunidade. Ao longo do processo, aprendi muito com cada uma delas — ressalta.
Para o diretor administrativo e financeiro do GHC, José Ricardo Agliardi Silveira, os autores materializaram os seus feitos.
— O livro traz valores e sentimentos. As pessoas aqui fazem parte das nossas vidas e da história do GHC — comenta.
Amor aos animais
Morador da antiga Dique desde 1992, o agente de saúde Aramito Miramar da Silva, 56 anos, mudou-se com a família para o Porto Novo em 2014, quando o posto Santíssima Trindade foi transferido para o novo conjunto habitacional. Por indicação dos próprios colegas, ele acabou se tornando parte do livro. Aramito é conhecido na comunidade pelo amor aos animais.
Em casa, mantém seis cadelas e um cachorro. Na rua, ajuda a cuidar de uma dezena de cães de rua comunitários. Para estes, constrói casas especiais, com colchões feitos de espuma e telhado colorido, nos finais de semana. O primeiro a ser recolhido da rua foi Pé de Pano, um cão cuja pata direita dianteira não fica firme no chão. Em seguida, vieram Pretinha, Luz Divina, Negra Li, Bibi e outras tantas. Por mês, compra 50kg de ração para alimentar os cães de casa e os da rua. Se falta, complementa com comida caseira.
— Quando me convidaram para fazer parte do livro, achei que não teria o que contar. Minha vida é comum, normal. Mas no dia do lançamento foi bem emocionante. A gente descobre que tem história para contar — resume.