Diz o ditado popular que o direito de um termina no exato ponto onde começa o do outro. A frase parece sob medida para resumir a contenda entre moradores e frequentadores da Cidade Baixa, em Porto Alegre. Com frequência, enquanto centenas de notívagos divertem-se nos bares e nas ruas do bairro mais boêmio da Capital, vizinhos das áreas mais movimentadas reviram-se na cama, tentando ignorar os ruídos externos e cair no sono para uma merecida noite de descanso.
– Aqui, virou moda fazerem baile funk – reclama o técnico de enfermagem Adauto*, 46 anos, que se habituou a ligar o ventilador para abafar o barulho vindo das ruas, faça frio ou calor.
Durante duas madrugadas, Zero Hora conversou com moradores, comerciantes e frequentadores. Todos estão descontentes. Donos dos bares que tornaram a rua uma das referências na noite da Capital se queixam de que o perfil dos notívagos mudou: eles ficariam menos nos estabelecimentos e mais na rua. Já os boêmios reclamam da pressão para liberar a rua – na madrugada de 16 de julho, a Brigada Militar usou bombas de gás para espantar as pessoas que ocupavam a via, depois de policiais terem sido recebidos a garrafadas. Moradores que não aguentam mais o barulho se reúnem em grupos de WhatsApp e pedem providências ao poder público. A tensão cresceu nos últimos meses.
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E seu epicentro é a Rua João Alfredo, onde Adauto mora com sua mãe, Noêmia*. De quarta-feira a domingo, ele transfere o colchão para o corredor do apartamento e dorme junto à porta. Tudo para fugir do alvoroço que invade o seu quarto, de frente para a rua. Aos 85 anos, dona Noêmia conta que seguidamente acorda com gritos ou brigas na via, que concentra cerca de uma dezena de bares e danceterias:
– Teve uma vez que tremeram os vidros. Parecia que iam todos se quebrar. E dispararam os alarmes de vários carros aqui do prédio. Era o som de um carro na rua.
Fã de Pink Floyd – o toque de seu celular é a música Time –, Adauto afirma não se opor à vida noturna na região. Pelo contrário. Diz, inclusive, que sai eventualmente para se divertir, mas sempre com o cuidado de não perturbar os demais moradores.
Para o técnico em enfermagem, a origem do barulho que tira o sono não está na concentração de casas noturnas, mas na reunião de centenas de pessoas no lado de fora dos bares e danceterias e nas dezenas de automóveis que ficam estacionados – a maioria, com caixas de isopor abarrotadas de bebidas, compradas em supermercados – ou transitando pela região com potentes equipamentos de som.
– Quando (os frequentadores) não param o carro, ficam circulando pelo bairro todo. A maioria não é daqui (de Porto Alegre). Eles ficam disputando para ver quem tem o som mais potente – explica Adauto.
Na rua, jovens, som alto e isopores
1h30min de sábado, 29 de julho. Enquanto a cidade parece deserta, a João Alfredo ferve, mais especificamente entre a Luiz Afonso e a República. É tomada por jovens que aglomeram-se nas calçadas e na pista de rolamento para beber e conversar, arrumados em vários níveis: de chinelo de dedo a salto alto. A maioria não faz nem menção de entrar em algum bar ou casa noturna do bairro. Como a turma do vendedor Gabriel da Silva, 22 anos, que levou uma caixa térmica recheada de cerveja e gelo à rua.
– A gente fica mais fora, só entra em um pub quando tem algum evento importante – diz ele, que garante achar graça em ficar a madrugada na rua: – Isso aqui é uma distração para todo mundo.
Passar de carro por ali requer paciência. As duas pistas se transformam em uma, de mão única. Mesmo assim é preciso andar devagar para desviar das pessoas, e uma fila de cerca de 25 carros se forma no sentido bairro/Centro. Pelo menos uma vez, uma viatura da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) passa pela via, e um carro da Brigada Militar estaciona perto da multidão.
No rádio do carro, o funileiro Lucas de Oliveira Zitto, 24 anos, conectou, via bluetooth, uma sequência de funk, e deixou a porta aberta para ouvir o som, razoavelmente alto. Morador do Rubem Berta, conta que foi até a Cidade Baixa "atrás de mina". Ele não tira razão dos moradores que se queixam de barulho, mas argumenta: não é seu som que gera o maior ruído, e sim o falatório da multidão.
E realmente não foi necessário música para incomodar um morador de um prédio perto da esquina com a República. Alguns jovens que conversavam sobre a marquise foram surpreendidos com uma sacola cheia de água jogada do quarto andar – deu para ver a veneziana se fechando logo após a "investida". A sacola de plástico acabou ficando presa nos fios, e ninguém se molhou.
– Tem uns moradores que não concordam com gurizada na rua – diz, contrariado, o estudante Renan Alves, 23 anos, lembrando que recentemente foram espalhadas faixas pelo bairro contra a "baderna noturna". – Isso acontece durante muitos anos, e só se revoltaram agora?
No fim de semana, a busca por refúgio
É que, agora, a harmonia entre moradores e notívagos foi quebrada, diz a psicóloga Débora*, 39 anos. Moradora da Baronesa do Gravataí desde 2006, ela passou a migrar para a casa de sua irmã sempre que pode. Busca uma noite tranquila de sono para concentrar-se em seu trabalho de doutorado.
– É uma briga pela harmonia, para que as coisas funcionem pela regra – afirma Débora. – Ninguém aqui é contra bar. Todo mundo que mora aqui gosta de curtir as coisas de forma harmoniosa.
Ela não é exceção: nas noites de sexta e sábado, outros moradores da Cidade Baixa optam por refugiar-se na casa de amigos ou parentes em bairros mais tranquilos. A educadora física Sabrina, 35 anos, evita ficar em casa aos finais de semana, quando toda noite "é um inferno".
– Meu quarto é de frente para a João Alfredo. O pessoal que fica tocando instrumentos e cantando a noite toda na rua – explica. – Às vezes, durante a semana, consigo dormir na sala. Mas, no fim de semana, nem com tapa-ouvidos eu consigo. Domingo é um dia em que trabalho. E, se não consigo dormir, não consigo trabalhar direito.
A aposentada Janaína*, 60 anos, mora na Cidade Baixa desde os anos 1980 e se diz "profundamente incomodada" com a atual situação do bairro, que, segundo ela, se tornou mais difícil nos últimos 10 anos:
– As pessoas me dizem: "Se muda daí". Como vou me mudar? Moro aqui há 34 anos. Quando vim para cá, não tinha isso. Sempre estudei e trabalhei com o lazer. Por isso, não entendo essa forma de lazer que agride os outros. É uma falta de respeito total.
* Com medo de represálias, os moradores pediram que tivessem seus nomes trocados.