Quando a família do reciclador Valmir Miranda, 63 anos, mudou-se de Santa Catarina para o alto do Morro da Companhia, no Bairro Agronomia, em Porto Alegre, em 1966, eles não imaginavam que, 51 anos depois, receberiam uma ordem de despejo por morarem em área federal, pertencente à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Em fevereiro deste ano, a instituição ingressou com um processo de reintegração de posse de 43,4 hectares nos arredores da Avenida Bento Gonçalves _ em parte deles estão Valmir e outras 76 famílias da Vila Boa Esperança, uma comunidade composta por casas distribuídas em dois becos.
– Quando eu era guri, aqui era mato. Nunca apareceu alguém dizendo que esta terra tinha dono. Agora, para a minha surpresa, sou avisado que serei despejado. Isso não está certo – lamenta o reciclador.
O processo movido pela Ufrgs tramita na 6ª Vara da Justiça Federal de Porto Alegre. No mês passado, depois de ser procurada por moradores da Boa Esperança, a Defensoria Pública da União exigiu na Justiça a suspensão do processo pelo prazo de um ano até a definição de um pedido de concessão à universidade – feito pela própria defensoria – de uso especial para fins de moradia.
Segundo a defensora regional de Direitos Humanos no Estado, Ana Luisa Zago de Moraes, o pedido de concessão é inédito na DPU e baseia-se na moradia como um direito social, amparado pela Constituição Federal e seu princípio da função social da propriedade, inclusive prevendo a concessão de uso de imóveis públicos.
– Algumas famílias vivem no local há mais de 50 anos e muitas delas dependem de renda de programas de assistência social, sem condições de adquirir uma nova moradia. Em nenhum momento, na documentação da universidade, há notícia de conflito no local ou de perturbação das atividades desenvolvidas pela instituição de ensino em virtude da ocupação daquele espaço. Assim sendo, o processo é absolutamente prejudicial aos moradores que ali se encontram, em nada contribuiria para a sociedade e os fins aos quais a administração pública está voltada – argumenta Ana Luisa.
Pressão
Desde que recebeu o mandado da Justiça, em 15 de fevereiro, a diarista Erondina Sarturi, 44 anos, tem dormido menos. Moradora do Beco 4 há 22 anos – onde vive com duas filhas, o genro, cinco cachorros e três gatos – ela chegou ao local quando ainda não havia saneamento básico ou asfalto, duas conquistas hoje existentes na Boa Esperança.
– Estamos sob uma pressão, sob o medo de não termos casa daqui a pouco. Se tivermos que sair daqui, não terei para onde ir – desabafa.
A defensora pública Ana Luisa explica que, apesar de os moradores não terem direito ao usucapião (direito de domínio que um indivíduo adquire sobre um bem móvel ou imóvel em função de utilizar um espaço por mais de cinco anos, como se fosse o real proprietário desse bem) por ser uma área federal, existe a Medida Provisória 2220/2001 que regulamenta o Art. 183 da Constituição Federal e libera a concessão de uso especial de área pública para fins de moradia. O processo segue sendo acompanhado pela DPU, ainda sem definição do que deverá ocorrer com os moradores.
Local é de risco, informa Ufrgs
Por meio de nota, a Ufrgs informou que está com um processo de reintegração de posse desde 2009, quando o Ministério Público exigiu informações quanto a possíveis ocupações irregulares na Universidade.
A partir de um mapeamento que identificou os limites de suas áreas, foi constatada a ocupação irregular. Segundo o comunicado, "a Ufrgs não tem intenção nem poderá fazer nenhuma obra no local, tendo em vista que área traz grandes riscos de desmoronamento (instabilidade geológica) e também abriga parte de uma Área de Proteção Permanente (APP)".
A área, segundo a universidade, "constitui-se em um importante corredor ecológico unindo o Morro Santana aos demais morros em direção à zona sul da cidade". Além disso, "nunca houve autorização por parte da Ufrgs para que fosse ocupada".
A universidade acrescenta que parte das moradias irregulares está localizada em área de intervenção de projeto exigido pelo Ministério Público Federal relativo à construção de um muro de arrimo e que, "como se trata de área de risco, do ponto de vista legal, não existe a possibilidade de regularização, pois apresenta clara ameaça de deslizamentos da encosta e, principalmente, à integridade das pessoas".