Responsável por colocar Porto Alegre no mapa da política internacional, servindo de modelo para iniciativas replicadas em Paris, Barcelona, Bruxelas, Toronto, Lisboa e em milhares de outras cidades, o Orçamento Participativo está em xeque na Capital. Em um seminário no mês passado, o prefeito Nelson Marchezan anunciou a suspensão, pelos próximos dois anos, das assembleias que encaminham demandas da população. Alegou falta de recursos. O período servirá para a discussão de um novo formato para o OP no futuro.
– O OP não vai deixar de existir. Só não teremos assembleias para novas demandas. Precisamos discutir um formato em que a gente possa ter condições de executar uma demanda dentro do período entre uma assembleia e outra. Algumas pessoas defendem que seja bianual, mas isso pode desestimular a mobilização. Esse tempo vai servir para a gente aprofundar esse debate um pouquinho – disse o secretário-adjunto de Relações Institucionais e atual coordenador do Orçamento Participativo, Carlos Sieger.
As assembleias regionais e temáticas, realizadas anualmente, são encontros nos quais a população define demandas para serem incluídas no orçamento da prefeitura – além delas, existem fóruns mensais em que conselheiros e delegados eleitos pelas comunidades discutem esses temas. Segundo um levantamento feito pela atual gestão e utilizado como uma das justificativas para a suspensão das assembleias, das mais de 9,2 mil solicitações feitas entre 1990 e 2016, quase 2,4 mil estão pendentes. Integrantes da gestão passada dizem que o não cumprimento das demandas ocorreu em função de critérios técnicos e financeiros.
Nelson Marchezan não garante que o que ficou para trás será solucionado. Nos próximos meses, serão feitas reuniões nas 17 regiões do OP para que população defina prioridades entre as pendências. Nem todas serão executadas.
Apesar de a nova gestão garantir a continuidade do OP, agentes políticos e especialistas acreditam que a ferramenta de participação popular criada no governo do petista Olívio Dutra, no final da década de 1980, está sob ameaça. Isso porque a primeira vez em quase 30 anos que um governo suspendeu o processo coincide com um momento de crise no modelo de discussão.
– Acho que há um grande risco. Esse cancelamento é um precedente extremamente crítico, porque pode começar a esvaziar o processo, e ele perderá a capacidade de se reproduzir – diz Cézar Busatto, que comandou a Governança Local entre 2005 e 2016.
Não há uma data emblemática para o começo da agonia do OP em Porto Alegre. As primeiras tensões surgiram ainda nos governos petistas, na década de 1990. A intenção era ampliar o debate sobre as questões orçamentárias da cidade, mas as demandas da comunidade começaram a se sobrepor. As assembleias e os fóruns foram, cada vez mais, reduzidos a encaminhamento de problemas que exigiam investimento da prefeitura, sem uma reflexão maior sobre como viabilizá-los. A cada ano, pendências se acumulavam.
A reformulação ideal do processo, para especialistas, incluiria a retomada do debate do orçamento como um todo, e não apenas de uma verba específica destinada a obras. Segundo Busatto, a prefeitura tem resistido à discussão de temas como a estrutura tributária para evitar conflitos com empresários e corporações. Enquanto isso, as lideranças comunitárias do OP, em grande parte vinculadas a partidos políticos, usam o formato atual, focado nas demandas pontuais, para fazer carreira política ou alcançar cargos dentro da prefeitura.
– O OP vive um momento de grande crise. Ele nasceu para discutir todo o orçamento, não para apenas dinheiro novo para novas demandas. Todo esse conjunto, incluindo a receita, precisa ser discutido. O OP tem de ser repensado. Mas do ponto de vista de discussão de gestão, recurso e resultados, vejo um grande caminho pela frente – opina Busatto.
Reconhecimento da ONU e do banco mundial
Apesar de não ser unanimidade, poucas coisas são tão genuinamente porto-alegrenses quanto o Orçamento Participativo. Sua implantação na Capital, em 1989, motivou visitas de autoridades do mundo todo, que se inspiraram no modelo gaúcho para implantar a participação popular em diversas cidades. A Organização das Nações Unidas (ONU) e o Banco Mundial reconheceram o projeto como exemplo bem-sucedido de ação comum entre governo e sociedade civil.
– Do ponto de vista político, inclusive desde a ótica do marketing político da cidade, seu significado é enorme. Por exemplo, quando em Paris se cria um orçamento participativo, o nome da capital gaúcha é mencionado. O mesmo ocorre em Nova York, também em Barcelona e em várias outras cidades em nível internacional. Esse é um patrimônio político tão significativo que chega a ser impossível de medir – destaca o professor Alfredo Alejandro Gugliano, do departamento de Ciência Política da UFRGS.
Para Gugliano, que estuda orçamentos participativos há mais de uma década, a suspensão das assembleias representa uma perda na "qualidade democrática" da Capital. Apesar dos percalços, o OP ainda é visto como um mecanismo que viabiliza um controle, por parte da população, do que é feito com os recursos públicos.
– É um grande retrocesso do ponto de vista da cidadania. Em vez de ampliar a capacidade dos cidadãos acompanharem e interferirem na gestão municipal, estamos ampliando a autonomia governamental. Ou seja, está sendo retirada das mãos dos porto-alegrenses a capacidade de discutir e decidir onde é aplicada parte significativa dos investimentos municipais. Precisamente o contrário do que vem sendo levado adiante nas principais cidades do planeta.