Em busca de renda, a desempregada Isabel Segala, 21 anos, decidiu se dedicar a uma atividade que foi quase extinta no centro de Porto Alegre, mas voltou com força nos últimos meses: o comércio irregular de camelôs.
Isabel ajuda a vender miudezas ao lado da mãe na Rua Doutor Flores e se une a milhares de novos ambulantes que retomaram as vias centrais. Por trás desse fenômeno, estão a disparada do desemprego, a migração de estrangeiros e a precariedade da fiscalização municipal nos últimos anos – afetada pela redução no número de fiscais e pela dificuldade de contar com apoio armado para as operações de apreensão.
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– Tenho Ensino Médio completo, mas não consigo arrumar emprego. Como tenho um filho de dois anos para sustentar, resolvi trabalhar na rua – justifica Isabel, que rumou para a informalidade há cerca de duas semanas, após perder o emprego como auxiliar de serviços gerais.
Nas vias próximas, onde antes havia apenas um ou outro (ou nenhum) camelô, todas as manhãs surge um shopping popular a céu aberto: vende-se de cadarços a antenas digitais, de abrigos a frutas, brinquedos e relógios. Junto com os caixotes de produtos, voltaram também as alegações dos comerciantes legalizados de concorrência desleal por falta de pagamento de impostos e obstrução das calçadas.
– De um ano para cá, o comércio irregular aumentou muito. O lojista investe, mas acabam se instalando na frente da vitrine dele, e as vendas caem – argumenta o vice-presidente de Comunicação e Marketing do Sindilojas, Paulo Penna Rey.
Em sua defesa, os ambulantes se dizem vítimas da penúria financeira nacional.
– Trabalho na rua porque perdi o emprego e, com 51 anos, não consigo outro. Esse é o último estágio para quem quer trabalhar em vez de cair no mal – sustenta o camelô Gilmar Silveira, que atua na Rua Voluntários da Pátria.
A ocupação massiva do Centro por comerciantes ilegais foi um dos grandes desafios da Capital até 2009, quando a construção do PopCenter permitiu a transferência deles para 800 lojas e a regularização mediante pagamento de aluguel e taxas. Agora, há um novo desafio. Pressionados pelo desemprego – que disparou de 4,8% para 9% entre 2014 e o ano passado –, novos camelôs como Isabel Segala espalham suas mercadorias nas vias centrais. Muitos são imigrantes, principalmente senegaleses. Atraídos a princípio pelo boom econômico do país, formaram uma comunidade que estimula outros compratriotas a rumar a Porto Alegre apesar da crise.
– Estou no Brasil há um ano. As vendas estão fracas, mas não tenho planos de ir embora porque não tenho para onde ir – afirma um senegalês que se apresenta como Tiago, 38 anos, na Avenida Salgado Filho.
A nova invasão de ambulantes foi facilitada pela fragilização da fiscalização. De uma equipe de 120 fiscais municipais existente em 2003, restam 28 em razão de aposentadorias e transferências. Além disso, os servidores remanescentes perderam em outubro de 2015 um convênio que facilitava o apoio da Brigada Militar às operações de apreensão.
– Nunca deixamos de fiscalizar, mas desde 2015 as operações ficaram menos frequentes – afirma um servidor que prefere não se identificar.
Pelo acordo, o município pagava as horas extras dos policiais convocados para acompanhar as blitze e evitar eventuais conflitos. Depois disso, por razões como dificuldades financeiras da prefeitura e falta de efetivo da BM, o convênio deu lugar a parcerias mais raras e pontuais. Os fiscais do município também sofreram uma redução de 20% nas suas horas extras neste ano, o que dificulta a presença nas ruas fora do horário regular, como aos finais de semana.
A nova gestão da prefeitura já começou uma nova ofensiva contra a informalidade.
– Hoje, trabalhamos com a lógica de parceria, mesmo sem um convênio formal, e estamos contando com todo o apoio da Brigada para resolver essa questão dos camelôs. Não será fácil, mas vamos conseguir – garante o secretário municipal de Desenvolvimento Econômico, Ricardo Gomes.
Nova estratégia da prefeitura para retomar espaço
A estratégia da prefeitura da Capital para retomar as calçadas novamente ocupadas pelo comércio irregular combina ações de fiscalização com a oferta de alvarás para atuação em pontos pré-determinados, cursos de formação e encaminhamento para emprego formal. Cerca de 2,2 mil vendedores já manifestaram interesse de se regularizar, mas parte dos ambulantes se mostra reticente com a possibilidade de deixar as ruas mais centrais e movimentadas da cidade.
A ofensiva do município contra a ilegalidade teve início no dia 21 com o lançamento da feira Seja Legal – destinada a qualificar e legalizar ambulantes na cidade. No dia seguinte, fiscais do município apoiados pela Guarda Municipal e pela Brigada Militar realizaram ações de fiscalização para liberar as calçadas.
Também está sendo realizada uma "ocupação preventiva" de vias como a Rua da Praia, com a presença de servidores municipais, para inibir a instalação de bancas de venda. Essa iniciativa deve ser ampliada nos próximos dias.
– Há mais de dois anos não tínhamos uma operação deste tamanho no Centro. É uma situação complexa que não será resolvida de uma hora para outra, mas estamos enfrentando isso de forma estruturada para ser sustentável. Apenas fiscalizar não é uma coisa sustentável. Por isso, já oferecemos mais de mil vagas de treinamento e mais de 120 vagas de emprego – afirma o secretário Ricardo Gomes.
A concessão de licenças para os camelôs que quiserem se regularizar é acompanhada de algumas regras – o que desperta desconfiança entre alguns ambulantes que manifestaram interesse de se legalizar. Eles poderiam trabalhar em pontos como terminais de ônibus e viadutos, mas fora do quadrilátero central formado pelas vias Mauá, Caldas Júnior, Riachuelo e Dr. Flores. Por isso, alguns comerciantes informais não têm certeza do caminho que vão seguir.
– Me inscrevi para conseguir um alvará, mas vou avaliar se vou sair daqui. Não adianta ir para um lugar onde não tenha o movimento que eu tenho aqui. Não quero sair do Centro – diz o camelô Augusto Segala, 51 anos, que mantém uma pequena mesa com miudezas na Rua Dr. Flores.
A iniciativa também exigiria a adequação de ambulantes que vendem produtos vetados pelo município, como artigos falsificados. A iniciativa da prefeitura é bem recebida por outros ambulantes que estão dispostos a fazer algumas concessões para deixar a informalidade.
– É muito melhor trabalhar com tudo certo – afirma o imigrante senegalês Mamadou Diokhane, 25 anos.