Durante boa parte de sua história recente, Porto Alegre ergueu muros e grades, condomínios fechados e shopping centers. A cidade comemora seus 245 anos, celebrados neste domingo, embalada por um fenômeno inverso: proliferam eventos que estimulam a ocupação de espaços públicos como ruas, parques e praças. A tendência é interpretada por urbanistas como uma reação coletiva à sensação de insegurança e uma tentativa de recuperar o convívio social sem os limites impostos por concreto ou metal.
Nos últimos cinco anos, multiplicam-se briques, feiras, brechós, food parks e outras iniciativas de comunhão urbana a céu aberto. E o avanço segue em ritmo tão frenético quanto o dos blocos de Carnaval que tomam a Cidade Baixa: um levantamento realizado pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) a pedido de ZH revela que o número de licenças concedidas para atividades em ruas e avenidas saltou 21% entre 2015 e o ano passado, chegando a 1.808 permissões ao longo de 2016.
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"Há uma reação coletiva à sensação de insegurança", afirma urbanista
– Há uma reapropriação do espaço público – resume o arquiteto e urbanista Marcelo Arioli Heck, mestre em planejamento urbano e regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor da dissertação Espaço Público e Manifestações Urbanas.
Em seu estudo, Heck observou dois padrões fundamentais de ocupações que fervilham nas vias porto-alegrenses: manifestações com caráter político mais explícito, como as jornadas de junho de 2013 ou os protestos contra aumentos de passagens, e aquelas mais voltadas à promoção cultural e ao lazer, a exemplo de briques, apresentações artísticas e feiras gastronômicas.
Para o especialista, o fenômeno visto atualmente na Capital é resultado de uma combinação de elementos: a difusão de um conceito do chamado novo urbanismo de que as cidades devem ser pensadas para as pessoas, a proliferação de organizações como coletivos urbanos que articulam eventos públicos e a facilidade de organização trazida pelas redes sociais. Heck contabilizou pelo menos 120 grandes eventos disseminados via Facebook entre 2010, quando houve duas convocações, e 2014, quando já chegaram a 40.
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Para a arquiteta e urbanista Ana Cé, diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUCRS, a retomada do interesse por áreas públicas marca uma nova etapa da relação entre os moradores e a Capital após anos de predomínio da chamada "geração shopping center". Agora, haveria um maior equilíbrio entre a busca por convívio, lazer e comércio em locais fechados, privados, e os espaços comuns sem portas ou grades:
– As pessoas estão se dando conta de que há alternativas a morar em um condomínio e passar o final de semana no shopping. Os centros comerciais são uma parte importante da dinâmica econômica da cidade, mas a rua é essencial para a vitalidade urbana – opina a urbanista.
Além dos protestos e dos eventos culturais, o comércio de rua também ganhou fôlego novo na velha cidade. Briques, brechós e eventos com comida de rua viraram febre. Como resultado, a prefeitura já planeja criar um escritório voltado à gestão de eventos públicos, dentro da Secretaria de Desenvolvimento Econômico.
– Hoje, se uma atividade tem reflexo no trânsito, envolve a EPTC. Se ocorre em praça ou parque, precisa de licença da Secretaria do Meio Ambiente. Se tem comércio, é conosco. A ideia é ter um escritório que facilite essa coordenação – explica o titular de Desenvolvimento Econômico, Ricardo Gomes.
Pode parecer contraditório que a redescoberta da vida extramuros ocorra durante um período de elevada sensação de insegurança – mas, para especialistas, a multiplicação de eventos coletivos também é uma maneira de resistir ao cerco cada vez mais fechado imposto pela violência urbana.
– O cercamento que vem ocorrendo nos últimos 20 anos não contribuiu para a reversão da insegurança. Quanto mais as pessoas se escondem, mais grave fica a violência. Quanto mais vazias ficam as ruas, menor é o controle social do espaço público, e inúmeros estudos já demonstraram que esse é um fator de segurança. Onde há mais pessoas, mais portas, mais janelas, o que se chama de "os olhos das ruas", há mais segurança. Não é o único fator, mas é um fator importante – analisa Ana Cé.