Há em Porto Alegre uma vizinhança que se reúne para contar histórias assombradas, que empresta furadeira, muleta e panela para gente que até então não conhecia, que está disposta a compartilhar novidades e a lavar roupa suja em praça pública – sobra até para quem se atreve a "transar alto". Essa vizinhança mora no mesmo bairro, mas se encontra mesmo é no mundo virtual.
Criado no Facebook há quase três anos, o grupo Vizinhos do Centro Histórico – POA reúne mais de 19 mil membros. Um contingente superior ao da população de 385 cidades gaúchas alimenta o feed com pedidos e ofertas de gentilezas, além de debates menos gentis – que, em algum momento, chegaram a render a alcunha de Vizinhos da Treta Histórica.
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Em vez de dar cutucadas com um cabo de vassoura no teto para reclamar do barulho, ou de atravessar o corredor do prédio e bater na porta do patrício para pedir uma xícara de açúcar, os vizinhos movimentam apenas os dedos na tela do smartphone. Foi assim que Cristiane Sobrosa Souza, 32 anos, conseguiu emprestadas muleta e bota ortopédica. A assistente social publicou uma foto da perna engessada junto ao apelo: "Alguém pra ajudar essa vizinha foliã atrapalhada?". Ela se mudou recentemente e ainda conhece pouca gente no prédio novo, mas conseguiu o que queria em poucos minutos.
– Decidi pedir no grupo, pois já vi muita solidariedade com outros vizinhos – conta.
Há os que usam a comunidade para pedir e dar dicas – de telentrega de pizza a terreiro de umbanda –, vender seu peixe, perguntar se o súper está aberto ou apenas publicar fotos do pôr do sol. E lembra dos cartazes em postes com fotos de pets desaparecidos? Parece que também viraram coisa do passado. No final de fevereiro, a empreendedora Morgana Sousa, 23 anos, encontrou um gatinho perdido na frente do seu prédio. Acolheu o bichinho, colocou fotos no grupo e, no dia seguinte, já estava levando o felino Koda para a casa de seus donos.
– Em outros bairros, geraria muito mais transtorno e demora até achar o dono – comenta.
Nem todos os membros moram no Centro Histórico, afinal não se pede cópia do comprovante de residência para aprovar solicitações. Porto-alegrense, o jornalista Jorge Lencina, 53 anos, está há cinco anos em Brasília, mas fez questão de entrar no grupo.
– Mesmo longe, acompanho as coisas de Porto Alegre – diz.
Para quem segue morando no bairro, é possível usar a comunidade para se conhecer e se aproximar. No dia 11, vai ocorrer a sexta edição do chamado "churrasco na praça", na Brigadeiro Sampaio. Cada um leva o que for assar e o que for beber.
– Virou um grande evento, com mais de 50 pessoas por vez. Criança, cachorro, os moradores da praça, todo mundo participa – conta a tradutora e professora Bruna Vidor e Souza, 33 anos.
Muitas questões para mediar
O grupo começou em 23 de junho de 2014. Alice Castiel Ruas, 27 anos, produtora de cinema, conta que quis criá-lo para divulgar lugares legais e incentivar a microeconomia do Centro Histórico, que "ainda carrega muito dessa coisa de bairro". Mas, como em qualquer vizinhança, discussões são inevitáveis. Principalmente quando alguém resolve falar de política.
– Volta e meia recebo mensagens inbox como se eu fosse a diretora do colégio tendo que apartar brigas – conta, bem-humorada.
O outro administrador do grupo é o produtor cultural Rafael Brum-Ferretti, 46 anos – o zelador da comunidade, como brinca Alice. Hoje, ele dedica meia hora por dianas mediações, mas já foi bem mais.
– Em momentos de polêmica, gastava quatro horas por dia – relata Bruno.
O trabalho inclui aprovar solicitações para entrar no grupo (são umas 50 por dia), remover comentários preconceituosos e, em última instância, excluir vizinhos que ofenderem alguém.
O lado pitoresco do grupo
Fórum caça-fantasmas
Na semana passada, o freelancer Vinícius Peres, 26 anos, lançou a pesquisa: "Algum vizinho mora em uma casa assombrada? Alguém aqui já teve problemas com o outro mundo?". Apareceu quem jurasse que tem noiva enforcada nos fundos de casarão antigo, "espírito da cabeluda" em um banheiro de escola, passos misteriosos nos corredores do prédio ou aparições sinistras em praças. Quando uma vizinha relatou que um dia o copo de cerveja andou em "L" sobre a mesa, em apartamento na Rua Duque de Caxias, o outro tratou de interpretar a charada: "dizem que se o copo rolar em direção à Riachuelo é sorte no amor, mas se for em direção à Fernando Machado é sorte no trabalho. Azar só se o copo cair ainda cheio de cerveja". Muitos juraram que não conseguiriam dormir depois de ler as histórias.
A polêmica do transar em silêncio
Barulho gera desavenças entre vizinhos nos quatro cantos do mundo. Não é diferente no grupo. Mas um post em especial se destacou. Nele, uma integrante decidiu tornar pública a sua incomodação com vizinhos transando. Eles estariam fazendo tanto barulho que chegavam a atrapalhar o sono alheio, e a denunciante sugeriu que fossem para um motel.
– Entre fazer graça ou apoiar a queixa dela, o post acabou rendendo muitos comentários e circulou bastante – diz Rafael Brum-Ferretti, um dos administradores do grupo.
Com bom humor, volta e meia alguém relembra a "polêmica do transar em silêncio".
Paradoxo das reclamações
Não é só o volume dos gemidos da vizinhança que gera queixas. Reclama-se também do pão de tal padaria, da imundície do bairro, de alguns anúncios que são feitos no grupo. Reclama-se até da quantidade de reclamações – em um post que, é claro, gerou reclamações. "Olha, eu gostaria de reclamar de quem reclama das reclamações!", grafou alguém. Esse episódio foi definido por Rafael Brum-Ferretti como o "paradoxo das reclamações".
A celebridade canina
A personalidade mais famosa do grupo é... um cachorro. O Alemão, cão comunitário do bairro, ganhou notoriedade a partir de um post no grupo. No texto, o membro do grupo acusava o animal de atacar sua cadela "sem motivos maiores" e pedia que ele fosse preso com focinheira. Não demorou para surgir uma enxurrada de comentários defendendo o cachorro. Depois disso, vários veículos publicaram reportagens com o vira-lata que tem traços de pastor alemão e passa o dia perambulando pelo bairro.