Resultado da fusão das secretarias de Turismo e da Indústria, Comércio e Serviços com outros órgãos municipais, a nova Secretaria de Desenvolvimento Econômico, que passou a existir com a posse de Nelson Marchezan como prefeito, herdou do governo anterior um nem tão metafórico abacaxi para descascar.
Em calçadas do centro de Porto Alegre, a fruta pode ser adquirida a menos de R$ 4 em uma das diversas fruteiras a céu aberto que se multiplicaram no eixo das avenidas Borges de Medeiros e Salgado Filho no último ano. O preço, nesse caso, é semelhante ao praticado em supermercados da Capital. Já a economia em outros itens, que pode ser expressiva, é um dos principais atrativos para quem transita pela rua adquirir abacaxis, pimentões, ameixas, melões, cebolas e uma vasta gama de hortaliças. Mas a atuação irregular dos trabalhadores, que não têm licença para comercializar seus produtos, cria um impasse junto à prefeitura.
– É preciso entender que as pessoas que estão ali estão em busca de renda para sustentar sua família. Isso é legítimo e deve ser considerado. Mas elas também estão no espaço público, e há um regramento a ser aplicado. Temos de considerar esses aspectos: nem perseguir as pessoas, nem ignorar o regramento jurídico. A tarefa vai ser equilibrar essa questão – afirmou antes da posse o titular da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ricardo Gomes.
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Na última quinta-feira do ano, um tipo de camisa xadrez por cima da camiseta, tênis e calça jeans gritava, à esquina da Avenida Borges de Medeiros com a Rua General Andrade Neves:
– Qualquer pacote a R$ 2! Qualquer pacote a R$ 2!
Em seu terceiro dia como vendedor de frutas no Centro Histórico, Vanderson Amorin, 27 anos, tentava, no grito, conquistar quem perambulava pelo local. Com poucas opções ainda disponíveis, dispostos em caixotes no chão, precisou encontrar um jeito mais agressivo de desviar a atenção da concorrência, uma dupla de vendedores que, a menos de dois metros, dispunha de vistosos pêssegos e ameixas em baldinhos, além de gigantes abacaxis e cachos de banana em melhor estado do que os seus.
Natural de Butiá, na Região Carbonífera, Vanderson começou a trabalhar na rua com um empurrãozinho da crise econômica. Depois de perder o emprego em um call center, o jovem comunicativo passou a vender doces no Centro. Mas um assalto em pleno expediente, na semana passada, levou dinheiro, documentos e parte de seu estoque. O jeito foi recorrer a um cliente, um dos "patrões" da venda de frutas no Centro, para buscar a recuperação financeira e voltar a trabalhar exclusivamente com balas e biscoitos. Igualmente novo no ramo, seu colega na "banca" improvisada também foi vítima do mau momento econômico do país. Sem emprego formal, começou a trabalhar no centro há poucas semanas.
Conforme o setor de licenciamento de atividades ambulantes da anterior Smic, em dezembro cinco pessoas entraram com pedidos de regularização para essa atividade – algumas delas por indicação do setor de fiscalização, que realizou ações no Centro. A iniciativa foi vista com bons olhos pela secretaria, mas esbarrou na legislação municipal. Um decreto de 2010 proíbe qualquer novo mobiliário – como bancas de frutas – até que sejam concluídos "estudos relativos ao novo cenário que se pretende propor ao mobiliário urbano de Porto Alegre". Seis anos depois, sem conclusão alguma, o decreto que segue vigente impede que processos de licenciamento de atividades ambulantes com mobiliário fixo tenham continuidade.
– Vamos ter de dar um jeito de resolver. Por mim, revogava esse decreto. Ele está há seis anos trancando o licenciamento de novas atividades – avalia o chefe seção de licenciamento de atividades ambulantes da Smic, Gilberto Simon.
Com um discurso marcado pela pauta da desburocratização de atividades econômicas na Capital, o secretário escolhido por Nelson Marchezan para comandar o Desenvolvimento Econômico diz que é cedo para afirmar que o decreto será derrubado. Para Gomes, é preciso avaliar, primeiro, se o entrave é puramente burocrático, ou se há outras questões que impedem a regularização dos vendedores de frutas.
– É um problema complexo. Vamos fazer um esforço ativo de legalização, de trazer quem está na ilegalidade para a legalidade. Se houver algum excesso na legislação, vamos libertar essas pessoas para que possam trabalhar. Nosso compromisso de desburocratizar vai ser cumprido – sinalizou.
Caso o decreto municipal seja revogado, existe uma série de regras a ser respeitadas para que os ambulantes consigam se regularizar. A região onde se concentra boa parte dos comerciantes informais, por exemplo, terá de ser revista. Uma das razões é que não se pode emitir novos alvarás para o quadrilátero entre as vias Mauá, Doutor Flores, Riachuelo e Caldas Júnior. Outro item que terá se readequar é a distância entre cada vendedor. Se atualmente muitos compartilham a mesma esquina, caso venham a atuar conforme a legislação, terão de ficar a, no mínimo, 50 metros de distância de outras atividades do mesmo ramo.
Negócio dá origem a patrões da fruta e atrai até legalizados
Em um único dia da semana passada, ZH identificou 12 fruteiras informais apenas no eixo das avenidas Borges de Medeiros e Salgado Filho. Nem todas são resultado da iniciativa individual de algum desempregado. Há pessoas explorando vários pontos ao mesmo e também gente com banca regular aproveitando para expandir o negócio.
De boné, bermuda e chinelos, Gabriel Fogaça, 24 anos, contou ter se criado vendo o pai vender frutas no centro da cidade. Um dos líderes do comércio informal, ele conta ter sete "funcionários" atuando em diversos pontos da região central, a quem paga R$ 100 por dia. Os produtos, segundo ele, são adquiridos na Ceasa ou diretamente de produtores. Os preços praticados estão abaixo dos encontrados no mercado regular: um "baldinho" com quase 2 quilos de ameixas sai por R$ 5 – em um supermercado visitado pela reportagem, 1 quilo da fruta custava em torno de R$ 7. Um cacho generoso de bananas, cujo quilo passava dos R$ 8 em uma rede de supermercados, saía por R$ 3 na calçada. Em média, relata o feirante, as vendas somam entre R$ 3 mil e R$ 4 mil por semana. O sucesso nos negócios faz com que o esguio jovem empreendedor – cujos quatro irmãos também comandam vendas de frutas – ainda não pense em regularizar sua situação.
– Se formos embora daqui, no outro dia vai aparecer outro no mesmo lugar. Só colocaria ponto se fosse bem no Centro – diz.
A crescente oferta de frutas na região central levou trabalhadores formais a buscarem seu espaço para fazer frente ao comércio irregular. No ramo há quase 30 anos, Valdir Selau abriu, há cerca de seis meses, uma espécie de "sucursal" da banca licenciada onde atua, na Avenida Borges de Medeiros, em uma esquina um pouco mais acima, perto da Rua Jerônimo Coelho. De guarda-pó azul, em meio a pêssegos, mamões e melões simetricamente dispostos sobre caixotes de feira, ele conta que o negócio paralelo foi a salvação da banca formal, que viu as vendas entrarem em queda livre com a chegada da concorrência.
– Em quase 30 anos, esse foi o pior. Acho que foi por causa da crise, do desemprego – palpita o vendedor, que já buscou a Smic para tentar licenciar o novo empreendimento.
Para outros feirantes com alvará – conforme a Smic, são 23 em toda a cidade, 12 deles no Centro –, a concorrência informal gera inconformidade. Na esquina da Borges de Medeiros com a Rua Fernando Machado desde 1998, os primos Osi Hendler e Osmar Medeiros amargam o fim de um ano ruim nos negócios. Segundo estimam, as vendas no ponto 24 horas caíram em torno de 40% após a expansão dos informais. Não foram os únicos a perder clientes: uma banca vizinha encerrou as atividades há cerca de quatro meses pelo mesmo motivo. A dupla, que aluga a banca de uma senhora que não tem condições de trabalhar, já tentou conseguir uma própria, mas foi impedida pela legislação municipal, que proíbe novos empreendimentos do mesmo tipo na cidade.
– Agora a prefeitura diz que quer legalizar os vendedores do Centro. Acho injusto. A gente sempre tentou ter uma banca e nunca conseguiu – desabafa.