O Carnaval de escolas de samba em Porto Alegre vive uma crise sem precedentes em 2017. Faltando menos de dois meses para os desfiles (levando em conta a decisão de realizar um Carnaval temporão, na segunda semana de março), ainda há muita indefinição em relação ao assunto.
Não há nem mesmo a confirmação de que ocorrerão as apresentações e, em caso afirmativo, de que forma e onde serão feitas.
As indefinições surgiram a partir do anúncio, pelo prefeito Nelson Marchezan (PSDB), de que, neste ano, não haverá verba do município para o Carnaval.
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A previsão, decidida no ano passado pela Câmara de Vereadores na votação do orçamento de 2017, era de cerca de R$ 7 milhões, dos quais R$ 2,1 milhões seriam divididos entre as escolas de samba em forma de cachê, e o restante, para a montagem da estrutura da passarela do samba.
Seria o fim de uma tradição de oito décadas? Ou oportunidade para um recomeço vigoroso?
Em busca de respostas, o Diário Gaúcho ouviu a professora e mestre em História Helena Cancela Cattani e um dos mais antigos participantes dos desfiles na cidade, Hélio Dias.
Helena, autora da dissertação de mestrado G.R.E.S. Porto Alegre: o Processo de Cariocalização do Carnaval de Porto Alegre, aponta entre as causas da crise atual a concentração dos desfiles em um único local, um crescente preconceito de parte daqueles não participam da festa, o abandono de importantes tradições e a dependência criada pelas agremiações em relação à verba pública.
Para a professora, o momento seria do retorno de antigas características do Carnaval. Hélio não vê como possível essa retomada.
A reportagem tentou ouvir os dirigentes das escolas, mas, entre quinta e sexta, nenhum atendeu ao telefone.
"Cariocalização" não deu certo
Em sua dissertação de mestrado, a professora de História Helena Cancela Cattani, 31 anos, define como "cariocalização" do Carnaval de Porto Alegre a tentativa de copiar o modelo criado no Rio de Janeiro.
Para ela, esse foi um dos graves problemas que conduziram o evento à situação atual.
– A "cariocalização" é um falso fenômeno. Tentou-se aqui em Porto Alegre copiar o Carnaval espetáculo de Rio e de São Paulo. Até comprar fantasias prontas de escolas do centro do país se fez aqui. Não deu certo – afirma.
Para Helena, esse processo de aproximação resultou no abandono de tradições locais, que costumavam mobilizar e atrair o público.
– Antigamente, as fantasias eram confeccionadas na casa de alguém da comunidade ou integrante da própria escola. Esses locais acabavam reunindo componentes de alas e viravam uma espécie de subsede da escola. Hoje, as fantasias são feitas em ateliês distantes, que só os dirigentes sabem onde ficam – avalia.
A professora considera que esse tipo de profissionalização da confecção de fantasias faz parte de um processo adotado pelas agremiações que acaba também afastando o público das quadras.
– A movimentação nas quadras, com raras exceções, tem se resumido a uns dois meses antes dos desfiles, com ensaios semanais. No restante da ano, nada acontece – diz.
Isso, de acordo com Helena, é uma contradição, pois, ao mesmo tempo em que as escolas tentam copiar os modelos carioca e paulistano, abrem mão de importantes medidas adotadas pelas entidades do Rio e de São Paulo.
– Nestas cidades, são obtidos ótimos patrocínios da iniciativa privada porque, além da maior visibilidade, as escolas contam com projetos para médio e longo prazos. Por aqui, só pensam no próximo Carnaval. Não existe visão de futuro.
Reféns do dinheiro público
A crise atual do Carnaval não existiria se, ao longo do tempo, as escolas não tivessem criado uma dependência em relação ao poder público, na avaliação da professora Helena.
Para ela, essa subordinação fere outra das tradições da festa em Porto Alegre.
– O Carnaval nunca foi uma coisa pública. Os coretos nos bairros, onde ocorriam desfiles, eram bancados pelas comunidades e pelos comerciantes do entorno. Existia o livro de ouro para arrecadar dinheiro para a festa – afirma, com base em suas pesquisas.
Os próprios desfiles, entre 1956 e 1965, foram bancados pela iniciativa privada, com patrocínio de uma marca de refrigerantes.
Em 1990, foi aprovado o projeto que deu origem à Lei 6.619, que tornou o Carnaval um evento oficial do município. O mesmo diploma legal, ainda em vigor, estabelece que os desfiles sejam realizados em locais públicos, com a infraestrutura bancada pelo município. A cada ano, na votação do orçamento pelos vereadores, passou a ser incluído o cachê das escolas.
– Por lei, a prefeitura tem de dar dinheiro para a montagem da passarela, mas as escolas ficaram dependentes demais do dinheiro público. Durante alguns períodos, como no fim da década de 90, foram obtidos bons patrocínios. Agora, poucas conseguem investimentos privados e dirigentes acabaram se acomodando, sempre contando com a verba do cachê.
A expulsão do centro
As pesquisas realizadas por Helena em sua dissertação de mestrado partem do Carnaval de 1962. Naquele ano, segundo apurou, havia 56 coretos espalhados pela cidade, onde ocorriam desfiles das escolas de samba.
Em 1973, esse número caiu para oito. Começava aí um processo de concentração dos desfiles. Um dos motivos, de acordo com a historiadora, foi um crescente preconceito.
– Com o tempo, começou a ser criada a ideia de que o Carnaval é incômodo, com as pessoas pensando dessa forma: "Pode existir, mas não perto da minha casa". O mesmo foi ocorrendo em relação às quadras das escolas – destaca Helena.
Esse fenômeno, além de provocar gradativamente a concentração dos desfiles em um único local, acabou empurrando-os para o Extremo Norte da cidade, bem distante do Centro, com a implantação do Complexo Cultural do Porto Seco, a partir de 2004.
Isso, de acordo com a professora, contribui para a atual crise, pois, no novo palco, foram realizados desfiles com arquibancadas praticamente vazias.
– A prefeitura vendeu o Porto Seco como um projeto grandioso, que teria atividades o ano inteiro. Os tradicionalistas bateram o pé e não foram para lá. E, desde a inauguração desse sambódromo, todos os que passaram pela prefeitura (João Verle, José Fogaça e José Fortunati) prometiam, todos os anos, que seriam construídas arquibancadas. Hoje, o que se tem lá é chão.
Tradição como alternativa
A retomada de antigas tradições pode ser a solução para tirar o Carnaval de escola de samba de Porto Alegre da atual crise. Pelo menos na visão da professora Helena Cattani.
Uma das medidas a serem adotadas, segundo ela, seria a retomada da movimentação das quadras de ensaios, com eventos a serem realizados ao longo do ano.
– É hora de repensarmos o que queremos a apoiarmos todas as iniciativas. O Carnaval não é só o desfile. As quadras deixaram de ser um local de sociabilidade – diz.
Helena vê uma luz no fim do túnel em alguns projetos que já estão sendo desenvolvidos, como o Padedê do Samba, que forma novos mestre-salas, porta-bandeiras e porta-estandartes, trabalhando com crianças e adolescentes, e o Centro de Estudos e Pesquisas de Tema-Enredo (Cete), do qual ela faz parte.
– É necessário pensarmos em uma renovação constante. Mas as escolas têm de se engajar. Na Restinga, temos uma oficina de percussão, mas é um projeto muito mais do Mestre Guto (José Augusto Pereira da Silva, diretor de bateria) do que da própria escola – argumenta.
Por fim, a pesquisadora não descarta uma espécie de volta no tempo.
– Vamos voltar às origens, trazer de volta os coretos e reconquistar o público. O que nos impede de retomarmos o modelo original? Trazer de volta o Carnaval para o Centro seria uma vitória. Os primeiros desfiles foram na Rua dos Andradas. As Descidas da Borges, no pré-Carnaval, reúnem um grande público.
Patrocínios privados podem ser a saída
Com a experiência de quem chega ao seu 71º Carnaval, o aposentado Hélio Dias, 89 anos, vê com reservas os ideais da professora e pesquisora Helena Cattani.
Aos 19 anos, em 1946, Seu Helinho, como é chamado, foi um dos fundadores de Os Caetés, primeira tribo carnavalesca da cidade, uma tradição que só não foi totalmente extinta devido à resistência de Comanches e Guayanazes, que ainda desfilam.
Ele também passou pela transição entre blocos e escolas de samba, ajudou a fundar a União da Vila do IAPI, em 1990, durante 28 anos fez parte da hoje extinta Associação das Entidades Carnavalescas de Porto Alegre (Aecpars) e, como servidor da Secretaria Municipal de Administração, por quatro anos, foi cedido para a Epatur, no período em que a empresa organizava a festa.
Ou seja: conhece o Carnaval de rua por todos os lados.
– Tudo tem a sua época. Quando a gente fundou a Caetés, cada fantasia custava o equivalente a R$ 200 e cada um de nós pagava a sua. Hoje, o Carnaval ficou muito mais profissional. Tem fantasia que custa até R$ 1 mil – destaca.
Por conta disso, Seu Helinho acha difícil uma retomada de formatos anteriores.
– Hoje, os empresários, na maior parte dos casos, não têm interesse em investir, pois não há retorno. A Vila do IAPI tem conseguido patrocínios, mas é exceção. Passando esse Carnaval, os dirigentes vão ter que formar uma comissão para decidir o que vão fazer a partir dos próximos anos. O que oferecer para conseguir patrocínio privado. Caso contrário, o Carnaval vai ficar da mesma forma.