São as luzes do quarto 517 do Hospital São Lucas da Pucrs e da tela da televisão as únicas vistas diariamente por Roger Inácio Dutra da Silva que, ao longo dos nove anos de vida, viveu fora da instituição por apenas 85 dias – nas três tentativas de morar com a família no Bairro Mato Grande, em Canoas. Quando o sol insiste em alcançar o menino por uma das poucas janelas do corredor do hospital, Roger, por quase desconhecê-lo, nega a aproximação: o teme.
Com síndrome de down e doença de Hirschsprung (que obrigou os médicos a retirarem parte do intestino do menino), Roger depende de tratamento médico contínuo e, por isso, mora no hospital ao lado da mãe, a artesã Eva Flores Dutra, 48 anos. Há três anos, ele recebeu alta médica, com a condição de ter disponível uma enfermeira particular (home care) quatro vezes por semana para auxiliá-lo na alimentação parenteral – dieta pela veia. Sem condições financeiras de pagar pelo tratamento, a família exige a estrutura fornecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Na sexta-feira passada, a Justiça determinou que, em 24 horas, Canoas e o Estado começassem a fornecer os alimentos e o tratamento adequados à criança. Até ontem, a decisão não havia sido cumprida.
– Estamos há quase dez anos aqui dentro, envelhecendo. Mas o meu filho tem o direito de viver, de ir à escola, ir a uma pracinha e interagir com outras crianças. De aproveitar a vida dele – suplica a mãe, enquanto é observada por um sorridente Roger sem entendimento da própria situação.
Dedicação exclusiva
Desde o nascimento de Roger, Eva abandonou a profissão de artesã, deixou em segundo plano o marido, Silvio, 51 anos, e a filha, Carolina, 22 anos, e a própria vida. Os sinais da dedicação exclusiva ao filho são reconhecidos pelas equipes do hospital e estão nos poucos dentes de Eva, que perdeu quase todos por falta de tempo para tratá-los, e nos problemas na coluna, resquícios de dias e noites dormidos numa poltrona ao lado da cama hospitalar do filho.
Nem mesmo a tentativa de transformar em casa o quarto 517 B, dividido com outros quatro pacientes, evita o choro da mãe, sempre enxugado pelas mãos carinhosas de Roger. Ao redor da cama, amontoam-se livros, brinquedos e alimentos doados por dois voluntários que ajudam Eva há dois anos, depois de conhecerem a situação da família numa reportagem anterior do jornal. As paredes rabiscadas com lápis coloridos mostram o gosto de Roger pelas artes, herdado da mãe. Numa rotina limitada entre caminhar do quarto para a ala de recreação infantil e a biblioteca infantojuvenil, Roger comemora quando se depara com o carro de metal de Raio-X num dos corredores do hospital.
– Mãe, olha o raio! Olha o raio! – grita, apontando para o equipamento, antes de se aproximar para alisá-lo como se fosse um brinquedo.
Comunicativo, o menino costuma receber com beijos e abraços os funcionários de todas as partes do hospital. Nas tardes de domingo, quando há sol, a mãe e o filho descem os cinco andares para, durante uma hora, desfrutarem da luz do dia.
– O Roger ainda tem dificuldades de aceitar o sol e lugares com muitas pessoas. Por isso, só saímos quando diminui o movimento. Não é vida para ele, nem para mim – desabafa Eva
Pai está doente
As últimas semanas têm agitado o menino pela ausência do pai. Desde o início do mês, Silvio está internado no Hospital Universitário, em Canoas, em tratamento para cirrose. O caso é considerado extremamente grave. É Carolina quem fica com o irmão para Eva ver o marido. No São Lucas, o garoto pede a presença do pai.
– Espero que a decisão da Justiça seja cumprida o mais rápido possível. Quero levar o Roger para ver o pai, pois não sabemos por quantos dias o Silvio continuará vivo – diz a mãe.
Município e Estado respondem
A advogada da família, Paula Santos, considera que, em casa, o gasto com os tratamentos de Roger, levando em conta serviço de enfermagem, aparelho para aplicação de alimentação especial, medicamentos e materiais, seria pouco mais da metade do valor gasto no hospital – onde estão incluídos despesas com hotelaria.
Na sexta-feira passada, a juíza Annie Kier Herynkopf acolheu pedido da advogada e determinou "que o município de Canoas e o Estado do Rio Grande do Sul forneçam os alimentos e o tratamento de saúde adequado, indicadas na inicial de acordo com a prescrição médica (...) devendo, ainda, comprovar as providências tomadas no prazo de 24 horas".
Em nota, a Secretaria Estadual da Saúde informou que "a Assessoria Jurídica da SES/RS recebeu a intimação em nome do paciente Roger Inácio Dutra da Silva na sexta-feira (23/12). Hoje (26/12), foram abertos expedientes administrativos para encaminhamento das demandas aos setores técnicos competentes. Com a maior brevidade possível, as áreas técnicas vão analisar as solicitações e verificar a viabilidade de atendimento da ordem judicial".
Já a Secretaria Municipal de Saúde de Canoas informou em nota que "recebeu este comunicado no dia 23 de dezembro. A partir disso, vem providenciando as condições para acolher este paciente em Canoas, já que o referido tratamento envolve cuidados especiais, com uma série de técnicas e procedimentos. Para isso, a SMS já está fazendo contatos com as equipes clinicas e de serviço social dos hospitais da PUC e HU, com a Secretaria Estadual de Saúde e com a mãe do paciente, senhora Eva. Também está reunindo mais informações pertinentes às necessidades nutricionais de Roger, pois no documento inicial não havia descritivo clínico, medicamentoso e todo o plano terapêutico, bem como as condições da família em receber estas orientações. O caso será analisado e respondido juridicamente, respeitando as exigências legais e as demais competências pertinentes ao Município e da SES/RS, conforme exige o caso".
Acolhimento institucional
Em meio à luta da família, a prefeitura de Canoas chegou a sugerir ao Ministério Público o acolhimento do menino em lar transitório nos abrigos de Porto Alegre. A medida protetiva foi ajuizada por entender que Eva e Sílvio não teriam condições de cuidá-lo. Ao saber da situação, a advogada Paula Santos assumiu o caso em julho deste ano. Em 19 de dezembro, uma audiência descartou o lar transitório.
– Quero levá-lo para casa. O município e o Estado tem total condições, pois eles fornecem essa alimentação. Não é um custo estrondoso. É vantagem (financeiramente) para o município. É vantagem pra ele, que vai ter um convívio social adequado. Não vou desistir até conseguir que esta criança e esta mãe possam ir para casa – afirma a advogada.
Família aceita doações
Para se manter no hospital cuidando do filho, praticamente, 24 horas, Eva conta com a ajuda de dois doadores voluntários. Porém, às vezes, falta dinheiro para a alimentação básica da mãe. Quando for para casa com o filho, a família aceitará auxílio para as compras dos medicamentos, dos suplementos alimentares e das fraldas de Roger. Contatos pelo fone: 99574-5891, com Eva.