Nos encontramos em um desses restaurantes naturais do centro da cidade, outrora lugar tranquilo, agora zona de ocupação estudantil. "Restaurantes, de um modo geral, estão minguando e irão minguar", me diz ela diante do meu prato cheio de comida. O seu prato, assim como o restaurante, está vazio. Ela conta sobre a nova vida em tempos de crise. Sente estar tendo que fugir das zonas de conforto e acha isso muito bom. Explica para si mesma sobre essa nova fase, agora um pouco mais próxima à zona de pobreza financeira. "Financeira", faz questão de frisar. Estranhamente, os tempos de crise nos fazem atentar às zonas de conforto que se tornaram peso. Ela é ex-corporação. Eu sou ex-blogueira.
Enquanto pago a comanda, ela escolhe sementes de girassol, tomate e trigo. Comerá, germinará e plantará todos eles. Enquanto fala, lembro de haver recém terminado o volume quatro da Recherche..., mas isso não faz diferença alguma. Ela coloca dentro da mochila muito mais comida do que eu havia consumido no almoço. Custa menos do que o meu prato. A economia doméstica passa por dedicar tempo à casa. Voltar-se às próprias sujeiras, agora que a diarista precisa ser dispensada, a faz entender o valor dos serviços seus e dos outros. "Ter tempo para si, é isso o que a crise me faz entender. Ou aprender. Eu me separei, e isso é bom. Nunca acreditei em jantares." Ao rapaz do caixa, pergunta se o movimento continua caindo. "Do restaurante, sim. A loja está vendendo mais." A dona nos olha e depois olha para o funcionário. Sinto alguma coisa perto de medo de um dia pertencer àquela hierarquia. Antes do café, me convence a irmos juntas ao Mercado Municipal.
Na Borges, entre a iminência do assalto ou dos rompimentos subindo a escadaria, e a imunda ocupação das galerias, optamos pelo trottoir entre os acampados. Tranco a respiração, desvio de cães, quase atropelo uma criança. Aquele não é lugar para crianças, ouso pensar comigo mesma, antes de voltar a pensar em mim. Minha bolsa esbarra em um braço forte. Chego ao Mercado exausta. Procuro um qualquer lugar para voltar às zonas de conforto expresso. Ao fim de duas xícaras, ela retorna carregada de sacolas de pano, todas velhas e todas suas, plenas de grãos, folhas verdes, coisas embaladas em papel pardo, óculos de sol, protetor solar e um pote grande de mostarda Dijon que entrega para mim. Agradeço. Sempre fico algo sem jeito ao ganhar presentes. Pago meus cafés, guardo as anotações que sempre faço em guardanapos quando estou sozinha, e deixamos o mercado. Eu e ela. Ela e eu.
A Borges, no calor das duas da tarde, horário de verão, são todos os odores evaporando ao mesmo tempo. Cogito saltar para dentro de um táxi, mas ela segue firme no propósito de me arrancar de minhas zonas de conforto. No caminho, a Dijon cai rente ao corpo de um que dorme. Outro esbarra em seu corpo e é por pouco que a sacola não vai toda ao chão. Tudo é por pouco, constata antes de retomar o equilíbrio. "Um homem quase passou a mão na minha bunda!", cochicho em seu ouvido. Atrás de nós, o cheiro dos mijos, os cacos de vidro, o amarelo forte da mostarda, os relógios parados e nossos saltos borboletas batendo asas contra o chão.
Em casa, no fim do dia, já quase na hora do chá, constato para mim mesma a necessidade urgente de desabitar minhas zonas de conforto. Encho o pneu da bicicleta e desço para pedalar.
* Ismael Caneppele escreve mensalmente para o Caderno DOC.