Recentemente, a escritora Lionel Shriver, conhecida pelo best-seller Precisamos falar sobre o Kevin, causou polêmica ao defender a prerrogativa dos escritores de falar através dos personagens que queiram, mesmo que sejam muito diferentes do autor na vida real. Em outras palavras, reivindicava o direito de dar voz a pessoas de outras etnias, gêneros, épocas, classes sociais. Sua fala foi muito criticada, e ela, acusada de minimizar os efeitos da apropriação cultural – um conceito que questiona o uso de símbolos e experiências de grupos identitários minoritários por outro dominante.
Interrogar a apropriação cultural e as várias formas de colonização é pertinente, pois expõe relações de poder tão estabelecidas que parecem naturais. São discussões necessárias, que permitem a muitas pessoas e grupos encontrarem outras narrativas sobre sua condição, produzindo importantes deslocamentos que viemos acompanhando em vários âmbitos da sociedade. Dar voz a quem não tinha possibilidade de ser escutado no espaço público enriquece o debate, desestabiliza e reestrutura os jogos de força que configuram o tecido social.
Esse debate, porém, às vezes acaba indo a um extremo, para o qual Shriver alerta: o de que apenas quem pertence a determinado grupo identitário seja autorizado a falar de sua condição. Um efeito disso é a restrição da liberdade de expressão – paradoxalmente, muitas vezes por parte de quem se diz defensor das liberdades. Mas há outro perigo: a impossibilidade do diálogo, com o consequente empobrecimento da experiência de si mesmo. Se apenas minha versão sobre mim é válida, sem confronto com outras, não há por que dialogar.
A psicanálise, aliás, só funciona porque os pacientes se permitem interrogar suas narrativas sobre si mesmos, que sempre têm pontos cegos e bretes.
Bons escritores têm essa capacidade de enunciar, através de pessoas inventadas, algo que os toca e que faz eco na experiência de outras pessoas. Ficou famosa a afirmação de Flaubert "Madame Bovary sou eu", mas em alguma medida todos os personagens de um escritor carregam algo dele próprio, mesmo que seja muito distante de sua experiência pessoal. Muitos escritores deram voz a sujeitos, mas também a sentimentos marginalizados, com isso enriquecendo a compreensão do mundo e da condição humana. Outros criaram caricaturas cheias de preconceitos, mas isso é parte da liberdade para criar – e até pode enriquecer o campo do debate e da crítica, como acontece amiúde nas redes sociais.
Cercear as possibilidades de expressão na literatura e nas artes em prol de uma retidão discursiva traz o perigo de restringir a extensão da experiência humana, para a qual os escritores em muito contribuem. Ao buscar restringir a priori a liberdade criativa, em vez de se valer de seus frutos para alimentar o debate e o pensamento, corre-se o risco de impor, em nome de um suposto bem, uma ditadura do pensamento. O cuidado com a palavra e com o lugar do outro são efeitos interessantes de nossos tempos, mas podem ter, levados ao extremo, esse efeito danoso. Em última instância, a exigência de silenciar em relação à condição do diferente é desumana: impede a tentativa, sempre insuficiente – mas necessária –, de estender pontes para o outro.
Paulo Gleich escreve mensalmente para o Caderno DOC.