Está sendo muito estimulante acompanhar a carreira de Daniel Galera. Prosador de já comprovada capacidade, tanto em formatos médios (Mãos de cavalo) quanto em corridas de fundo (Barba ensopada de sangue), voltou ao ringue agora com Meia-noite e vinte (Cia. das Letras). Mais uma grande narrativa, bem levada, com ritmo e profundidade, personagens fortes e significativos, tudo isso acrescido de outro elemento de interesse – a narrativa é claramente um balanço de geração.
O enredo flagra a vida de quatro amigos, que no presente andam entre os 30 e os 40 anos mas que se conheceram num passado já distante, no tempo da faculdade, quando juntos haviam inventado um fanzine digital enviado por e-mail, o Orangotango. São eles Aurora, bióloga que faz doutorado na USP, Antero, publicitário bem sucedido que ainda vive e trabalha em Porto Alegre, mesma cidade em que havia sido criado aquele zine e onde vive também Emiliano, jornalista.
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Os três vão interagir numa Porto Alegre escaldante, durante um verão macabro em que o fedor do lixo agravou mais ainda o desconforto pela longa greve de motoristas de ônibus. E pela tragédia inesperada da morte do quarto parceiro, Andrei Dukelsky, vulgo Duque, que vinha numa forte carreira de escritor de prestígio e sucesso. A sombra dessa morte acompanha o romance do começo ao fim.
A narrativa se desenvolve em seis partes, alternando a palavra entre os três sobreviventes, todos marcados por esse amadurecimento que a década entre os 30 e os 40 impõe. Paulo Francis, num de seus momentos de gênio, disse que são estes os anos da prova, em que a maioria dos talentos se prova, quando há talento. Entre os 20 e os 30, só gênios de fato conseguem mostrar tudo a que vieram; acima dos 40, raros serão os que ainda conseguem.
Antigos namoros, relações bloqueadas, preferências sexuais, carreiras profissionais, gostos em geral, todo esse repertório que constitui, no fim das contas, uma experiência geracional, vem expresso nas linhas e entrelinhas de Meia-noite e vinte, título que evoca uma cena inaugural para os quatro, relativa à passagem do ano 2000, aquela em que nos alertaram para o "bug do milênio".
Com grande desembaraço e força descritiva, Daniel Galera nos transporta para o cerne dessa experiência geracional, que é cronologicamente a sua mas é, mais difusamente, a de todos os que estamos aqui, na acelerada vida digital, essa que permite estar em todas as partes. O relato de eventos ligados à internet e ao mundo dos computadores, na mão do autor, tem uma força e uma precisão só possíveis, creio, para sua geração mesmo, que era ainda adolescente quando apareceu a possibilidade de espalhar textos em todo o planeta e de colher informações de toda parte, e não para os que já eram adultos nos anos 1990, como é o meu caso, que carregamos uma estranheza congênita para com este meio, e também não para os mais jovens, cidadãos internéticos de nascença, cujas mamadeiras já têm chip.
Emiliano vai escrever a biografia de Duque, escritor promissor de seu tempo, capaz de inventar enigmas como só os novos tempos permitem conceber e, depois, rastrear. Antero talvez não saiba sair da prisão de seu sucesso. E Aurora... Sua experiência ilumina a condição feminina de nosso tempo, até o desfecho, que é uma pena que eu não deva comentar aqui, para não estragar a surpresa.
O novo romance de Daniel Galera é ótimo, alinhando-se entre o que de melhor se escreve em nosso tempo, no país e em português. Se o enredo e os personagens namoram uma visada meio apocalíptica, talvez característica da geração, não é menos certo que o romance dá voz a um sentimento que há mais de século ronda a consciência humana, e que Eliot assinalou: de fato o mundo não acaba com uma explosão, mas com um suspiro.