Uma das melhores formas de se conseguir um bom guerreiro é prometer-lhe a liberdade em troca da vitória. A segunda-feira acorda com neblina no Centro Histórico. No céu, algum planeta muito intenso deve estar circulando por zonas ásperas. O inverno ousa finalmente terminar, a primavera está no ar, mas há esse vento constante, cada vez mais quente, soprando do rio e incomodando as árvores. Não muito longe daqui, os tradicionalistas acampam, celebrando a Revolução Farroupilha.
Na iminência do 20 de Setembro, me pergunta se conheço a história do célebre 1º Corpo de Lanceiros Negros. Respondo que sim, meio querendo não saber. Tendo vergonha de saber. De qualquer forma, é sempre estranho ver o outro narrando o meu lugar. Vindo de fora, ele contava para um terceiro que desconhecia a história desses 461 escravos libertos pela República Rio-Grandense e treinados para lutar na revolução. Já no fim da guerra, com os bravos sulistas devidamente acalmados, sobraram aqueles cuja liberdade não foi possível manter em tempos de paz (ou de derrota). Será a eles a referência ao "povo que não tem virtude, acaba por ser escravo"? Olham para mim, sem que eu saiba o que responder.
O final dos bravos lutadores é trágico e cruel. Temendo a revolta, Davi Canabarro recruta os Lanceiros Negros e ordena que marchem desarmados e que acampem em local distante e desprotegido. A chacina que matará entre 600 e 700 negros, embora a história branca relate cerca de 100, é um acordo entre o futuro Duque de Caxias e "um chefe dos Farrapos". Foi noite de sangue negro. Noite de golpe. Batalha de Porongos. Ou Traição de Porongos. Narrativas.
Vindo de fora, ele acha legal caminhar pelo Acampamento Farroupilha. Eu também achava, até conhecer a história desses lanceiros. Hoje, não consigo mais. A narrativa da Revolução, pouco a pouco, apresenta a sua face mais triste. Pergunto se há espaço para a memória dos Lanceiros Negros dentro do acampamento, mas ele não sabe responder. Deve haver. Agora venta forte e eu também penso nos piquetes, nas tardes de sábado em que frequentei o CTG, e na limpeza étnica.
Pensamos nos presídios lotados e na urgência de se olhar para os que lá estão. É preciso se ver no presídio para entender a dor do outro. No rádio, os defensores da paz da gente de bem se colocam em campo oposto aos defensores dos direitos humanos da bandidagem. É complicado farejar alguma possibilidade de menos violência quando o mesmo indivíduo sequestra para si a capacidade de ser bom e violento. Penso em Davi Canabarro e nas homenagens póstumas. Penso nas cidades com seus homenageados, personagens históricos de uma ditadura não tão distante. Penso na forma como o tempo hoje será contado amanhã.
Penso no golpe de Canabarro, e de como ele é contado pela história, pela política e pela imprensa. Acho estranho que a imprensa se coloque nesse confortável lugar de julgar a relevância histórica das mulheres e dos homens do agora. Surpreende essa aparente incapacidade de alguns jornalistas de se perguntarem como a imprensa será tratada pela história. Há um pânico presente de vir a ser taxada de golpista. Um pânico que se justifica nos vazamentos, na seletividade das manchetes e no desaparecimento de assuntos importantes da pauta do dia. Um pânico da História. Minha amiga jornalista volta para SP e diz que todos estão tristes. Segundo ela, a casa caiu para a grande mídia. "Os sobrenomes estão pichados nos muros da cidade e alguns precisam desviar a rota para não serem confrontados com a verdade".
São tempos de temer.
Tenho medo do que pode acontecer. As ruas estão silenciosas. Na história recente da democracia, jamais vivemos dias tão difíceis de serem explicados. Não há como prever o que virá. São tempos de potência para os Nietzscheanos. São tempos de trairagem para os que acreditam nas próprias mentiras. São tempos em que narrativas não podem ser abafadas. Tempos assim, são sempre de medo e potência para os que vivem na palavra.
*Ismael Caneppele escreve mensalmente para o Caderno DOC.