Quando criança, em contados domingos, íamos a um lugar especial: um restaurante que tinha comida à vontade. Para nosso apetite infantil, acostumado ao feijão com arroz do dia a dia, era o paraíso; podíamos comer o que quiséssemos, tomar refrigerante, comer sobremesa até dizer chega.
O cenário daqueles almoços excepcionais tornou-se, porém, algo comum: buffets livres, com suas dezenas de pratos e sobremesas, viraram feijão com arroz.
Não só no cenário gastronômico a fartura passou a ser banal. Em festas e happy hours, surgiu o famigerado open bar, no qual se bebe quanto se quiser por um preço fixo. Nos serviços de internet e celular também nos acostumamos com a ideia do ilimitado: torpedos, minutos, megabytes. Serviços de saúde, idem: paga-se uma mensalidade para fazer quantas consultas e exames se quiser – muitas vezes, mais do que o necessário. Embora tentemos resistir ao excesso pregando que menos é mais, ainda nos captura a ideia de quanto mais, melhor.
Estamos tão acostumados com a fartura a ponto de ela ter se tornado o mínimo, o básico. Temos acesso – os que integramos as camadas mais privilegiadas da população – a cada vez mais alimentos, produtos, serviços, opções, marcas, possibilidades. Nosso dilema não é faltar leite, mas não encontrarmos nossa marca favorita, sem lactose e com ômega 3. Nos incomodamos com as barbaridades do mundo e da política, mas nos revoltamos mesmo quando ameaçam limitar nosso uso de banda larga. Mexam em nossos direitos civis, mas não em nossos direitos de consumidor!
Aquilo que, para muitos, pode parecer um sonho de abundância, para alguns é a mais tediosa realidade cotidiana. Enquanto a maior parte da população sofre para ter condições mínimas de vida, outros sofrem ao constatar que, mesmo tendo muito, continuam infelizes. O que talvez esteja na raiz desse first world problem – "problema de primeiro mundo" – é a crença de que ter em abundância e evitar frustrações é garantia de bem-estar. O fracasso dessa lógica é evidente nos sintomas das crianças "sem limites", mas mesmo assim ela nos captura.
Acreditamos que tendo tudo seremos plenos, mas o problema é que jamais estamos plenamente satisfeitos – e não há abundância que baste. Sempre queremos algo mais, porque aquilo que desejamos, quando alcançado, nunca é o que imaginávamos. As compulsões, tão comuns na atualidade, testemunham da dificuldade de lidar com isso: ao seguir comendo, bebendo, consumindo, insistimos na fantasia de alcançar um prazer pleno. Nos empanturramos não por fome ou desejo, mas por frustração. Por isso, a epidemia de obesidade talvez não seja apenas pelos alimentos a que temos acesso, mas pela função que cumprem em nossa psique.
É difícil se afastar dessa lógica, pois ela nos cerca por todos os lados, nos seduzindo com seu canto de sereia de que alcançaremos a plenitude pelo consumo. Conseguiremos construir outros ideais de bem-estar que não sejam pela fé na abundância? Para isso, talvez seja preciso parar de acreditar, como crianças, que felicidade é ter sempre acesso a tudo, e à vontade. A felicidade da abundância pode ser um belo sonho, mas tornada realidade vira pesadelo – nos deixando inertes e empanturrados.
Paulo Gleich escreve mensalmente para o Caderno DOC.