Se houvesse uma modalidade em que pudesse concorrer nos Jogos Olímpicos, a torcida brasileira seria forte candidata à medalha de ouro em patrulha esportiva. Ao mesmo tempo em que torce com fervor ("Vai Brasil!" "Eu acredito!" "O campeão voltou!"), reage a uma derrota com a mesma virulência e passa a xingar os atletas que minutos antes inflamava ("Ih, amarelaram!" "Perdedores!" "#%$¨&*$*!!!"). Na arena das redes sociais, polemiza até mesmo as conquistas – seja questionando o gesto de continência, no pódio, de atletas ligados às Forças Armadas, seja discutindo o passado menos nobre de um medalhista.
Assim como revela traços da cultura brasileira, esse modo de torcer reflete transformações nas relações contemporâneas, analisa o professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos Ronaldo Henn, que pesquisa a produção de acontecimentos nas redes sociais. Por um lado, as timelines eternizam e dão eco ao que antes seria apenas conversa jogada fora numa mesa de bar, potencializando o efeito dos comentários. Por outro, reverberam a tensão política que divide o país.
– A Olimpíada é o momento de expressão e reiteração dessas polaridades políticas. É quase o coroamento de um projeto político que foi rompido, porque foi pensada nas gestões de Lula e Dilma. E agora se vê o predomínio das cores verde e amarela, que marcaram as manifestações pelo impeachment. E então vibrar cria essa sensação dúbia – observa Henn.
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Um exemplo dessa disputa ideológica seria a repercussão do primeiro ouro brasileiro, o da judoca Rafaela Silva. Enquanto alguns festejavam sua conquista como símbolo de ascensão das camadas populares do país – invocando sua condição de mulher negra, pobre e favelada, público-alvo das políticas sociais dos governos petistas –, outros exaltavam sua ligação com as Forças Armadas, como exemplo de disciplina e esforço individual, valores que a direita costuma exaltar.
– A conquista reacende essa discussão da cena política brasileira, a meritocracia versus as políticas públicas sociais. É uma discussão ideológica importante, e seria impossível passar batido na Olimpíada – analisa o pesquisador.
A ligação de atletas com as Forças Armadas, aliás, foi um dos temas mais espancados no ringue da crítica. Para Katia Rubio, autora do livro Atletas olímpicos brasileiros (Sesi Editora, 2015) e professora da Escola de Educação Física e Esportes da USP, a polêmica da continência no pódio foi superdimensionada. Como o Programa de Atletas de Alto Rendimento, desenvolvido pelas Forças Armadas, oferece bolsa e estrutura para o treinamento em troca de alistamento voluntário, a adesão é considerada mais um patrocínio do que propriamente uma carreira militar. Dos 465 atletas olímpicos brasileiros, 145 têm essa vinculação. Entre os que prestaram continência no pódio, estão Felipe Wu, Arthur Nory, Rafael "Baby" Silva e Arthur Zanetti.
– As Forças Armadas se tornaram mais uma fonte de renda para os atletas. Assim como colocam o logotipo da Sadia, do Bradesco, dos Correios, também têm obrigações a cumprir como atletas militares. É uma relação profissional, não ideológica – pondera Katia.
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A pesquisadora considera essa polêmica uma mostra de desconhecimento dos comentaristas de Facebook, os mesmos que tendem a fazer cobranças exacerbadas por medalhas ou desmerecer esforços.
– Ninguém discute física nuclear sem saber um pouco de física, mas todo mundo assiste aos Jogos Olímpicos e acha que entende de esportes, porque estão passando na televisão. Aí ficam dando pitaco e falam muita bobagem, inclusive jornalistas – diz.
Ainda que a cobrança da torcida seja por vezes desproporcional, havia uma expectativa generalizada por melhores resultados, alimentada pelo próprio Comitê Olímpico Brasileiro, que prenunciava uma colocação no Top 10, com pelo menos 24 medalhas. A frustração em modalidades como natação e vôlei feminino achatou as perspectivas.
– Havia expectativa de mais medalhas, não levaram. O que significa? Significa Jogos Olímpicos. Há inúmeras projeções, mas estamos lidando com os melhores do mundo. O que separa o ouro do bronze, o terceiro do quarto, às vezes é um detalhe mínimo – aponta Katia, que pesquisou por 15 anos a história dos atletas olímpicos brasileiros para seu livro.
Miguel de Arruda, professor titular da Faculdade de Educação Física da Unicamp e ex-consultor da Confederação Brasileira de Atletismo, concorda que as derrotas fazem parte do jogo, mas critica a falta de uma política nacional para esportes. Ainda que tenha havido um investimento recorde em atletas de alto rendimento nos últimos anos, ele observa que o movimento não foi acompanhado de uma preocupação com a formação de base e a renovação de quadros.
– Os atletas em destaque foram potencializados, mas não houve nenhuma renovação, falta uma política de formação desportiva. Existe carência de gestão, é um problema histórico. Não é um fracasso, mas se perdeu uma excelente chance de se ter políticas públicas de esportes – lamenta.
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Ainda que o país esteja longe de ser uma potência olímpica, a realização dos Jogos Olímpicos no Brasil revigorou entre a torcida a ambição pela vitória. Atletas que decepcionaram essa ânsia de redenção pagaram um preço alto. Após ficar de fora da semifinal dos 200m borboleta, a nadadora Joanna Maranhão chegou a receber ataques de pessoas desejando que fosse estuprada – ou que morresse afogada. A saltadora Ingrid Oliveira foi acusada de "colocar os instintos antes do esporte" depois da revelação de que tinha feito sexo às vésperas da prova de plataforma de 10m sincronizada, quando ela e a colega Giovanna chegaram em último lugar. Já a seleção feminina de futebol colheu elogios – com os memes "Marta é melhor do que Neymar" –, mas a menção soava mais como uma alfinetada pelo mau começo da seleção masculina do que propriamente um reconhecimento ao time feminino, historicamente relegado a um segundo plano.
– Existe uma expectativa muito grande sobre os atletas, como se fossem heróis, como se fossem robôs. Qualquer coisa que fuja da imagem perfeita da pessoa disciplinada parece que não é aceitável, mas eles são gente como a gente. São seres humanos normais. A cobrança é desproporcional porque existe o desejo da vitória. É a expectativa de um momento de felicidade, de ver algo bom, ainda mais no tempo que estamos vivendo, com a Operação Lava-Jato e a crise política – diz o psicólogo Rodrigo Acioli, presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte.
Subir ao pódio tampouco livra o atleta de cobranças, como aprendeu o ginasta Arthur Nory, bronze no solo masculino. No ano passado, depois da divulgação de um vídeo com um comentário racista envolvendo um colega, foi suspenso pela Confederação Brasileira de Ginástica e pediu desculpas. Mas não conseguiu se livrar do estigma. Enquanto seu nome ganhava as manchetes como medalhista, usuários das redes sociais republicavam o vídeo que desencadeou a polêmica. Nory falou que se arrepende, mas as redes não esquecem.
– Não há espaço para perdão. A memória é reiterada e recolocada em cena. Isso não é uma coisa nova. O escritor argentino Jorge Luis Borges, por exemplo, até hoje enfrenta sentimento de repúdio por parte de alguns porque defendeu a ditadura. Mas hoje esses casos são reiterados nas redes sociais com uma intensidade nunca vista. A pessoa pública tem que aprender a lidar com isso – analisa o professor Ronaldo Henn, da Unisinos.
Mesmo que essa torcida passional por vezes descambe para agressividade na internet ou gestos questionáveis – como as vaias a atletas de outros países –, o psicólogo Rodrigo Acioli avalia que a discussão de temas como racismo, homofobia e protestos políticos na esteira da Olimpíada cumpre um papel social importante, por refletir sobre a realidade. E lembra que os Jogos também ficarão marcados por momentos de bom humor e criatividade dos brasileiros. Um dos casos emblemáticos foi o dos torcedores que, na ausência de um competidor brasileiro no boxe, decidiram torcer para o juiz. Enquanto lutadores do Azerbaijão e do Cazaquistão se enfrentavam pelas quartas de final da categoria peso médio (até 75kg), torcedores vibravam a cada intervenção do árbitro paraense Jones Kennedy: "Juiz! Juiz! Juiz!".
– Isso também fala muito da torcida do Brasil – salienta Acioli.
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Para o sociólogo Ronaldo Helal, do Laboratório de Estudos em Mídia e Esportes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, um dos problemas é que o Brasil oscila entre "o otimismo tolo e o pessimismo exacerbado". Ou somos os melhores, ou os piores do mundo. Isso se reflete tanto na cobrança aos atletas quanto na avaliação dos Jogos, numa gangorra que sobe e desce conforme as notícias do dia:
– Pelo fato de a Olimpíada ser no Brasil, havia preocupação de fazer bonito. E, no geral, estamos passando no teste. O balanço não é nota 10, mas é um sete. Se reclama muito das filas do Parque Olímpico, mas vai para a Disney, ver se você não vai pegar fila.