A aproximação das eleições municipais traz reflexos milagrosos nas cidades. Súbito, as soluções se tornam quase possíveis. Brotam flores, internet livre, latas de lixo... Os trâmites e mudanças se tornam simples quando o voto está em jogo.
O primeiro debate entre candidatos à prefeitura serve para constatar o quanto o carro me deprime. Só dentro dele escuto rádio. Tento as músicas, mas nada me toca. É que estou chato. É que agora é sábado de tarde e eu desço a pé a Borges de Medeiros sozinho tentando não notar esse clima estranho quase na Esquina Democrática. E as pessoas assim meio assustadas, e os bombeiros assim lavando o chão meio à jato, e uma água assim meio vermelha escorrendo entre as sujeiras da Rua da Praia. Eu não sabia que água era aquela. Cogitei ser água de suicídio as poças que eu pisava. Não era. Era água de mão decepada.
Leia mais
Homem tem a mão decepada por golpe de facão no Centro da Capital
Polícia procura quem cortou a mão de suspeito de furto de telefone
Por que a Região Metropolitana virou palco de crimes tão brutais
O motorista da lotação Rio Branco reclama a falta de passageiros. Relata chegar a cumprir itinerários inteiros levando não mais do que três pessoas. O rádio anuncia a queda de 10% no uso de ônibus na capital dos gaúchos. O número é quase inversamente proporcional ao aumento de cerca de 10% nos índices de violência no Estado. A equação talvez seja alguma coisa como "quanto menos ocupação, maior a violência".
No vulcão da Redenção, disse não ser ela quem irá gastar linhas para defender o que Pokémon Go comprova na prática. "Lugares antes perigosos, agora são ocupados por esse caçadores caminhantes das cidades. Ocupar e resistir finalmente transborda e contamina aqueles que talvez ainda não sacaram a equação englobando violência e ocupação".
Pedalar pela caótica ciclovia da Perimetral no primeiro dia das campanhas é ver um bandeiraço cor de laranja sem saber se são remanescentes da torcida da Holanda ou um partido querendo ser novo, mas usando de velhos pastiches para angariar votos. Quem, em pleno 2016, ainda se empolga com bandeiraço de esquina?
Passar pelo Largo dos Açorianos é constatar a falência da situação. Tapumes pichados e um espaço mutilado. Ela diz que gostaria de saber se os moradores dos prédios que ajudaram a desocupar as aglomerações nas noites de terça-feira no entorno ao lago, hoje se sentem mais seguros. "Deve haver algum que curta a farra do mosquito, tapumes e pichação, em que se transformou a praça". Entre as conquistas, contabiliza-se uma placa nova indicando um monumento decadente, um novo monumento dedicado às honras militares e um cercadinho para cachorro. Observando o Largo dos Açorianos silencioso e vazio, passando quase sempre com medo e com pressa, quase não há como negar a equação envolvendo violência e ocupação. O próximo verão, ao que tudo indica, seguirá silencioso e vazio. E cheio de mosquitos.
Nas ladeiras estreitas do Centro Histórico um carro de som grita os nomes de uma suposta nova esquerda gaúcha. Quando o novo polui ouvidos para ganhar votos, constata-se a manutenção do mesmo. O que já foi um sopro de novidade, hoje tenta ganhar no berro.
Volto a pensar na mão decepada na Esquina Democrática. Penso nessa sede de vingança, nos bilhões que sonegamos e na seletividade dos julgamentos. Penso na mão de Dilma e no quanto cambiou a nossa noção de justiça. A água que hoje escorre tem cheiro de mofo, gosto de bactéria e cor de sangue. Água de mão decepada de quem não cometeu crime algum.
Vença quem vencer, somos todos perdedores de antemão.
*Ismael Caneppele escreve mensalmente para o Caderno DOC.