Feliciano Falcão, 60 anos, precisa de um saco de ração vazio, um pedaço de taquara e um apito na língua para fazer dezenas de pessoas darem uma pausa no que de urgente estiverem fazendo no centro de Porto Alegre. Reproduzindo um som de animal ouriçado, há 40 anos, o "Homem do Gato" trava uma luta com um bichano imaginário preso dentro da embalagem, transformando a calçada em palco para seu show de humor – que não tem tanta graça assim para quem considera de mau gosto a simulação de agressão a um animal.
– Se tem uma roda com um monte de gente, é batata: é o Homem do Gato – diz Gabilene Lima, 42 anos, serviços gerais que conhece a peça há uma década e sempre para a fim de assistir de novo.
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Falcão é figurinha carimbada entre os artistas de rua que atuam na Andradas, no Mercado Público, na Praça da Alfândega e na Redenção. A brincadeira já é conhecida, mas nem por isso tem menos público: Gabilene observa que quando o artista revela o gato (que na verdade é apenas um pedaço de pano), as pessoas dão um passo para trás porque já sabem que ele vai lançar o objeto contra alguém da plateia, com um gritinho estridente que assusta até os prevenidos.
O artista se apresenta como "Feliciano Falcão: ator, mágico, palhaço, palestrante motivacional e animador de eventos".
– E Homem do Gato de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul, do Brasil e da Terra – acrescenta.
Nascido em Recife e criado em Florianópolis (o que fica evidente no sotaque), ele conta que o personagem foi criado nas ruas do Rio de Janeiro. Falcão tinha uma carreira de militar engatilhada - deveria servir à Marinha, como o pai -, mas foi correr atrás do sonho de ser artista. Estudou na Escola de Teatro Dirceu de Mattos e logo constatou que os planos de brilhar na TV e no cinema estavam mais distantes do que parecia. Ele descobriu o bendito apito que lhe permite imitar o som de um gato. Estava criada a atração.
Inicialmente, Falcão se apresentava vestido de homem das cavernas. O frio bateu e decidiu trocar a sunguinha de pele de coelho por uma calça esfarrapada, uma camiseta e um boné – o apetrecho, onde recolhe as contribuições, tem a estampa do personagem de desenhos animados Bob Esponja. Ao longo dos anos, aprendeu a interagir com o público – seja aquele que presta atenção, ou o que não presta. Quando passa alguém apressado, sugere: "banheiro, amigo?". Em outros casos, bloqueia a passagem dos pedestres e grita "eu te amo" para os homens.
– As pessoas que param viram cúmplices e, quem passa, vira minha vítima – explica.
Falcão conta que busca conquistar quem elege como alvo da brincadeira. Não é sempre que consegue. Mas quando alguém se estressa e quer brigar, tem a solução:
– Daí eu corro.
O artista de rua conheceu Porto Alegre em uma de suas excursões para exibir a atração, e lembra que em uma semana aqui vendeu mil apitos – que ele mesmo confecciona e é uma das fontes de renda. Hoje mora em Canoas com dois dos seus cinco filhos: Cassiano, 20 anos, e Marlon, 12 anos. Costuma pegar o trem para vir a Porto Alegre trabalhar, e não fica satisfeito quando ganha apenas R$ 200 em um dia. Na quinta-feira em que conversou com a reportagem de ZH, na semana passada, calcula ter juntado cerca de R$ 300.
Ele diz já ter ganho até R$ 5 mil por mês. Agora, entretanto, consegue por volta de R$ 3 mil. Culpa da crise, segundo ele, que reduziu a procura por shows e aumentou a pechincha (ele chega a cobrar R$ 600 em aniversários).
– Eu entendo que, independente de ter uma vida estabilizada com o personagem, tenho uma missão. Acredito que ganhei de Deus um talento para poder melhorar um pouquinho a vida das pessoas.
Abençoado ou não por uma entidade divina, é difícil negar que um "milagre" ele faz: conquistar a atenção do povo apressado do Centro de Porto Alegre não é para qualquer um.
"Agressões" ao gato são alvo de polêmica
O "Homem do Gato" está longe de ser uma unanimidade, e as pauladas que o artista investe contra o saco vazio onde estaria o gato feroz são alvo de críticas. Em 2012, a Secretaria Especial dos Direitos Animais (Seda) divulgou um texto afirmando que "esse tipo de manifestação incita a violência, principalmente em crianças e jovens que assistem o espetáculo". A assessoria de imprensa afirma que, à época, a pasta tentou dialogar com o artista, sem sucesso, e o debate não prosperou. Falcão se defende com o seguinte argumento:
– Você vai no cinema e o cara (a personagem) mata pessoas com metralhadora. Então todo mundo vai sair do cinema matando pessoas?
Ele destaca ainda que é dono de um gato "de verdade", que considera um grande companheiro.
A psicóloga Janet Marize Vivan, autora do livro Educando e Convivendo com Crianças e Adolescentes: Limites e Disciplina sem Agressividade, afirma que a criança pode não entender que se trata de uma atuação, e que a forma como vai encarar a atração vai depender da estrutura da sua família:
– Se ela vier de um relacionamento que não tem agressividade, onde os animais são tratados com respeito, vai olhar como brincadeira, ou pode nem achar divertido. Agora, se a família tiver um histórico de agressividade, pode significar um reforço de que isso é natural e até divertido, que não é um crime, e podem, sim, querer reproduzir.
Maria Alice Targa, psicóloga especialista em crianças, adolescentes e família, observa que a brincadeira de Falcão é muito semelhante às peças realizadas por palhaços em circos, e que "não se deve 'diabolizar' uma coisa que sempre existiu". Mas ela não recomenda esse tipo de espetáculo para crianças:
– Legitimar, em um espetáculo lúdico, que bicho é menos forte e pode apanhar não é uma boa. Mesmo que seja de faz de conta, é um faz de conta brutal.
Ela destaca que, quando acompanharem os filhos em apresentações como essa, os pais devem explicar que não é real, assim como não são reais uma série de coisas que se vê em desenhos ou jogos eletrônicos.