Nas redes sociais ou na mídia, histórias de superação fazem muito sucesso. São aquelas em que alguém transcende condições desfavoráveis e "vence na vida" – o que se concretiza na obtenção de um diploma, na conquista de fama ou dinheiro, na realização de um sonho. Em meio às desgraças abundantes em noticiários e timelines, essas narrativas funcionam como um pequeno alívio para nossas queixas e mazelas; as qualificamos de "inspiradoras", como exemplos a serem seguidos.
Esses heróis reais contemporâneos não são grandes estadistas ou benfeitores, mas sujeitos quase anônimos, com quem podemos facilmente nos identificar. Em alguma medida, a maioria de nós se sente pequeno diante dos desafios da vida, em um mundo que impõe o sucesso pessoal com cada vez menos instituições que ofereçam alguma garantia. Ao mesmo tempo em que nosso herói nos tranquiliza, traz consigo um mandato: se ele superou enormes adversidades, precisamos dar conta do nosso quinhão.
É curioso como, em tempos de posições tão polarizadas, esses personagens são quase unanimidade. Quem defende sociedades mais igualitárias os cita como prova de que os "excluídos" podem ir além das expectativas que lhes são conferidas; se a todos fossem oferecidas condições iguais, todos poderiam alcançar esses feitos. Já os defensores dos méritos individuais os tomam como prova de que são a força de vontade e o caráter o que define as possibilidades de alguém.
É indiscutível que condições externas determinam em boa parte as possibilidades de alguém crescer e prosperar: ter acesso a saúde e a uma boa educação, por exemplo, faz toda a diferença na formação de um indivíduo. Mas os defensores dos méritos pessoais também têm alguma razão: não são apenas os fatores sociais que definem as possibilidades de alguém. Mesmo em condições ideais de igualdade, não seríamos iguais – o que explica por que alguns conseguem transcender condições desfavoráveis contra todas as expectativas, assim como outros, que sempre "tiveram tudo", não conseguem ir adiante. Isso não é necessariamente um problema: é também reconhecer e valorizar as diferenças.
A falácia do debate mais raso que abunda nas redes sociais, opondo coletivismo a meritocracia, está na polarização, como se apenas um fator isolado determinasse o porvir de alguém. O aspecto social é contingente, mas não suficiente: boa moradia, saúde, educação e acesso ao trabalho não garantem, mas certamente facilitam, melhores escolhas. Da mesma forma, qualidades individuais – que, em boa medida, dependem daquilo que é transmitido pelos pais e pelo entorno mais imediato – não bastam, se os obstáculos a superar forem demasiados. Encontrar-se diariamente com adversidades como violência, discriminação e más condições de vida requer muito mais esforço que ter muitas portas abertas desde sempre.
Enquanto essa discussão for tão empobrecida, pouco se poderá avançar. É preciso sim reconhecer as diferenças individuais, não as relegando apenas à ideia vaga de "causas sociais". Mas também não se pode negar que as condições sociais têm peso crucial nas possibilidades de um indivíduo se realizar. Nesse sentido, cabe perguntar por que uma sociedade que supostamente preza os méritos individuais resiste tanto a oferecer condições minimamente igualitárias para todos. Se assim fosse, não seria possível que muitos – e não apenas as exceções das histórias de superação – pudessem por a prova seu mérito individual?
Paulo Gleich escreve mensalmente para o Caderno DOC.