Uma estação privada para tratamento de resíduos industriais está entre os cinco pontos incluídos na investigação que busca identificar a causa do mau cheiro e do sabor desagradável que caracterizam, há quase dois meses, a água fornecida pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) na Capital.
No final de junho, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) encaminhou para análise, em um laboratório de São Paulo, amostras de água que foram coletadas em pontos considerados suspeitos: um na região do Guaíba perto da rodoviária, um na casa de bombas da Trensurb e duas áreas da estação de tratamento São João, uma com água bruta e outra com água tratada. O quinto local é o interior da empresa Cettraliq, que, conforme a Fepam, entrou na rota dos exames em razão de sua localização, na região da Capital onde o odor sentido na água é mais forte. Os resultados devem sair até segunda-feira. Segundo o Ministério Público, outras companhias que lançam resíduos no Guaíba poderão ser avaliadas.
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Localizada no bairro Navegantes, junto à ponte do Guaíba e a pouca distância do centro de Porto Alegre, a Cettraliq trata efluentes líquidos industriais de 1,5 mil clientes, entre metalúrgicas, curtumes, universidades, fábrica de tintas, revendedoras de combustíveis e indústrias química, farmacêutica e calçadista. É a única empresa da Capital habilitada para esse tipo de serviço. O resultado do processamento é despejado na rede pluvial, com autorização da Fepam, e desemboca em uma zona do Guaíba situada a dois quilômetros de um dos pontos onde é feita a captação de água para tratamento e abastecimento da cidade.
A Cettraliq também está perto de dois locais onde foi identificada a presença de bactérias do tipo actinomiceto, que pode estar entre os fatores que interferiram na qualidade da água. Fica a 200 metros da casa de bombas da Trensurb e a cerca de 1,5 quilômetro da casa de bombas nº 5 do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP).
Odor nas proximidades se assemelha ao das torneiras
A bactéria em questão se prolifera quando há uma grande concentração de matéria orgânica – aquela derivada de organismos vivos, como animais e plantas – na água. Entre o material processado pela Cettraliq, além de compostos inorgânicos, há resíduos orgânicos (as únicas restrições da licença concedida à companhia são fluidos de usinagem sintéticos, solventes e agroquímicos e efluentes contendo compostos orgânicos voláteis).
Conforme especialistas consultados por ZH, isso habilita a empresa a lançar coliformes em concentrações mais altas, semelhantes às do esgoto doméstico. Licenciada pela Fepam até 2019, a Cettraliq tem autorização para processar diariamente até 500 metros cúbicos provenientes de atividade industrial – conforme a empresa, no entanto, atualmente o volume tratado fica em torno dos 140 metros cúbicos ao dia.
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A secretária estadual de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Ana Pellini, disse a Zero Hora que a fonte da matéria orgânica que alimentou as bactérias poderia ser de esgoto doméstico despejado de forma irregular. Ela destacou que, até o momento, não há diagnóstico apontando que empresas licenciadas pela Fepam tenham relação com os problemas na água e afirmou, ainda, que a companhia onde foi feita a coleta enviada para São Paulo opera "dentro dos padrões" estipulados na licença ambiental.
Nas proximidades da empresa, localizada a cerca de 200 metros da casa de bombas da Trensurb, onde foi identificado um cheiro forte semelhante ao verificado na água em Porto Alegre, moradores costumam sentir o odor de mofo característico com alguma frequência. A dona de casa Graça de Oliveira, 40 anos, diz que o cheiro é mais intenso e constante no verão, mas também aparece em alguns dias nos outros períodos do ano:
– No verão, é até difícil de respirar. Já faz alguns anos que é assim.
Cettraliq foi autuada pela Fepam em outras ocasiões
Funcionária de um restaurante da região, Franciele Madrid, 24 anos, conta que sente na água o odor incomum percebido no ar, nas últimas semanas. O estabelecimento comercial conta com filtro, mas, em casa, costuma alternar o consumo do líquido na torneira com água mineral:
– Não dá para beber só mineral porque fica muito caro. Mas sinto o gosto de mofo de uns dois meses para cá.
Até o momento, não há comprovação de que a Cettraliq esteja na origem dos problemas na qualidade da água. Em pelo menos duas oportunidades, porém, a empresa foi autuada pela Fepam por lançar no Guaíba resíduos fora dos padrões autorizados no licenciamento ambiental. Há seis anos, quando ainda operava sob o nome de Cettrel, recebeu o auto de infração 779/2010 por "ultrapassagem dos padrões de emissão estabelecidos para o lançamento de efluentes líquidos no corpo receptor". O documento não informa quais substâncias foram encontradas em quantidade acima do permitido, mas levaram à imposição de uma multa de R$ 2,8 mil em valores da época.
Já o auto de infração 789/2013, emitido com base em uma fiscalização realizada em maio de 2013, aponta "contaminação da rede pluvial à jusante (no sentido da correnteza) do ponto de lançamento dos efluentes industriais tratados da empresa por cromo, cobre, manganês e zinco, sendo tais contaminantes característicos do processo desenvolvido pelo empreendimento e lançamento de efluente industrial fora dos padrões estabelecidos na Licença de Operação em vigor (...)". Como resultado da irregularidade, a empresa foi multada em R$ 8 mil e recebeu prazo de 10 dias para corrigir os "problemas operacionais relacionados ao sistema de tratamento de afluentes". A companhia entrou com recursos contra as autuações, que seguem tramitando na Fepam, ainda sem definição.
Localização central da empresa é questionada
A Cettraliq fica em pleno bairro Navegantes, próximo ao centro da Capital e perto de pontos do Guaíba onde é coletada a água, que, depois de tratamento, vai jorrar das torneiras dos porto-alegrenses. Localizar uma planta para tratamento de efluentes industriais no meio de uma metrópole e junto a seu principal manancial não é irregular, mas especialistas apontam como ideal que um empreendimento desse tipo esteja afastado da zona urbana, para eliminar eventuais danos ao ambiente e à saúde da população.
Pesquisador da Feevale que trabalha com análise microbiológica da água, Fernando Spilki vê com preocupação o fato de uma empresa desse porte estar tão perto do abastecimento – fica a cerca de dois quilômetros de um ponto de captação de água do Guaíba. Ele destaca que o fato de a companhia ter um leque abrangente de atuação, que permita tratar cargas orgânicas e inorgânicas, expõe o material tratado a "uma situação perigosa de contaminação".
– A empresa trata, entre outros, efluente de percolado de aterro (chorume). Mesmo que esteja dentro do que foi autorizado, é um efluente difícil de lidar, ainda mais por estarem perto de um ponto de captação. Talvez precisassem de um ambiente com maior probabilidade de diluir esse material – diz.
ZH teve acesso à lista de clientes e a laudos do material tratado na Cettraliq de visitas feitas pela Fepam ao local. Somente de março a maio, o local recebeu ao menos 72 metros cúbicos de chorume proveniente da indústria calçadista. O índice teve alguns picos – ainda assim, muito abaixo do previsto na licença da empresa. Spilki considera, contudo, que os números são questionáveis para uma companhia que trata efluentes industriais e despeja resíduos tão perto da captação:
– Do ponto de vista acadêmico, empresas que tratam efluentes industriais não deviam ter contaminação por coliformes termotolerantes (compostos de, pelo menos, 70% de coliformes fecais). Aparecer nessa quantidade é indício de forte contaminação por carga orgânica. Isso pode dar certo por um tempo, mas um dia dá uma zebra.
Na zona urbana, riscos são maiores
Para a professora de gerenciamento de efluentes líquidos industriais da UFRGS Liliana Féris, uma situação como essa só seria segura se o tratamento dado aos efluentes atingisse a perfeição.
– Se as normas técnicas são levadas em consideração e não há nenhuma mistura, nenhuma contaminação, se o tratamento é bem feito, se o método está de acordo com o que tem de ser tratado, está tudo ok. Agora, o ideal realmente é que seja um pouco mais afastado. São caminhões que circulam, insumos que são colocados no tratamento – argumenta.
A visão é reforçada pelo biólogo Francisco Milanez, membro do conselho superior da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Ele afirma que o risco depende do tipo de resíduo processado – alguns têm baixo potencial de impacto. Mas ele considera prudente que estações fiquem em pontos afastados:
– Seria muito melhor, mais adequado, se ficasse fora do centro urbano. Existe um risco acrescido quando está na área urbana. Na cidade, qualquer coisa que acontecer de errado tem impacto na saúde humana, enquanto, no campo, isso se dilui. Na zona urbana, o impacto é maior, mais rápido e mais difícil de controlar.
Milanez explica que os actinomicetos, bactérias que podem estar por trás do mau cheiro e do gosto ruim da água em Porto Alegre, estão relacionados a cargas orgânicas – e que a presença delas podem ser um indício de tratamento de efluentes mal projetado. Já Fernando Spilki alerta que algumas das toxinas produzidas por bactérias que se alimentam desse tipo de material, além de causar odor, não cedem com carvão ativado, uma das táticas usadas pelo Dmae para tentar amenizar o desconforto para os consumidores.
A promotora de defesa do meio ambiente Ana Marchezan, responsável pelo inquérito civil que irá acompanhar as ações do poder público em relação aos problemas da água na Capital, diz que a proximidade de indústrias de tratamento de efluentes com pontos de abastecimento é "temerária":
– É uma questão que nos preocupa. Não sei no que vai resultar (a questão da água), mas até o Plano Diretor tem de se preocupar com isso. Ainda mais que só temos o manancial para abastecer a cidade nesse momento.
Mônica Barbosa, analista ambiental da Fepam, informa que a entidade não regula a localização dos empreendimentos no interior dos municípios. Se o zoneamento urbano definido pela prefeitura permitir a instalação de uma determinada empresa em uma região da cidade, diz ela, o órgão estadual exige apenas que sejam instalados todos os sistemas de controle necessários para evitar a contaminação do ambiente. Depois, cabe à Fepam fiscalizar as emissões de resíduos para que atendam aos níveis de segurança determinados pela legislação.