Uma das coisas mais importantes para qualquer estudo no campo das humanidades é entender o horizonte em que se está e aquele em que se configurou o objeto de estudo. Negligenciar isso pode ser intelectualmente mortal, por implicar uma brutal limitação do debate. Um sujeito provinciano se define não por viver numa província, mas justamente por não ter consciência sobre isso e, pior, julgar que seu lugar equivale ao universo.
Estudar literatura envolve isso; estudar a literatura gauchesca envolve isso ao quadrado, porque se trata de um tipo de literatura secundária, na Argentina e no Uruguai pelo preconceito citadino contra o campo, e no Brasil pela condição periférica do Rio Grande do Sul.
Vai daí que vale muito abrir as janelas e tentar ver o que acontece na vizinhança, em outros países e línguas, em situações paralelas. Os recentes esforços pela versão de Simões Lopes Neto a outras línguas, que ainda este ano devem ganhar edição, tem apresentado muitas novidades nesse campo.
Rosalia Garcia, professora de Inglês na UFRGS e tradutora da totalidade dos Contos, me falou dos estudos de Richard Slatta, dedicado pesquisador da literatura e da cultura dos homens a cavalo da América, começando pelo cowboy estadunidense mas sem terminar aí: ele conhece e frequenta também a literatura gauchesca, assim como a história de outros quadrantes conexos.
Em The Cowboy Encyclopedia (New York: W.W.Norton, 1994) lemos, na abertura do verbete "Gaucho", em tradução rápida: "Desde os anos 1600, os gaúchos (cowboys sul-americanos) andavam pelas planuras e pelo pampa do Rio da Prata onde hoje ficam a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e o Rio Grande do Sul, Brasil". Estamos nesta conta, portanto.
No verbete "Gauchesco", porém, há um panorama da literatura gauchesca platina, sem menção a qualquer escritor sul-rio-grandense – apenas argentinos e uruguaios são lembrados. Abre assim o texto, que traduzo na correria: "A literatura de ficção sobre o gaúcho, algumas vezes escrita em seu dialeto, é chamada de 'gauchesca'. O gênero alcançou reconhecimento nacional na Argentina, com poemas, peças e narrativas que tratam o gaúcho como herói. Por comparação, a maior parte da literatura norte-americana sobre o cowboy é tratada com relativo desprezo".
Por que a ausência de brasileiros, como, acima de qualquer outro, Simões Lopes Neto, mas também Alcides Maya, Amaro Juvenal com seu excelente Antônio Chimango, para nem falar de outros menos óbvios, como Aureliano de Figueiredo Pinto, Barbosa Lessa, Rillo e outros? Uma das respostas será a dificuldade de ler o português; mas outra será, creio, a nossa própria autoexclusão, o voluntário isolamento em que também nesse campo nós, brasileiros, insistimos em manter nossa literatura, em relação ao mundo americano.
Mas há mais. Tiago Pedruzzi, professor do IFSC, que faz seu doutorado estudando as traduções do Martín Fierro ao português, me deu de presente uma cópia de excelente estudo de Sabine Schlickers, professora alemã que analisou a mesma gauchesca. O livro se chama Que yo también soy pueta: la literatura gauchesca y brasileña (siglos XIX-XX), e foi editado pela Iberoamericana, de Madrid, em 2007.
Aqui já temos outra abordagem. Numa visada bem completa, entram na conta uruguaios e argentinos, mas também brasileiros, começando com Alencar e seu romance de 1870, mais Simões Lopes Neto, Maya e Cyro Martins, assim como o grande Amaro Juvenal e até Donaldo Schuler, com seu Martim Fera.
Sim, falta gente ainda. Mas falta também nós aprendermos a olhar para essa tradição, em seus momentos altos e nos baixos, distinguindo uns e outros mas reconhecendo sua existência e pensando sobre todos, em si e em contraste com a vizinhança platina, bem como com os demais casos de literatura feita sobre a vida dos cavaleiros desta grande América. Janelas abertas.
*Luís Augusto Fischer escreve mensalmente no Caderno DOC.