Leandro Valiati *
Nos últimos dias, a sociedade brasileira como um todo e o setor cultural depararam com mais uma torpe fraude contra o bem público: R$ 180 milhões desviados da Lei Rouanet. "Dinheiro público que deveria ser usado para produzir sobrevivência da arte marajoara, reisados e sambas griô é subtraído covardemente, como uma alegoria do pacto criminoso que captura o Estado nacional. Sem dúvida, um crime vil (e, por que não?, lesa-humanidade), pois certamente a cultura e a identidade são também direitos inalienáveis de uma sociedade.
Será esse o tiro de misericórdia nesse ultimamente tão falado instrumento de política cultural brasileiro? Será que, para além da pecha de vagabundos, os artistas financiados por essa política agora mostraram sua verdadeira face corrupta?
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Certamente que não. Precisamos olhar a realidade de forma mais ampla. Vivemos no Brasil um momento de extremos: por um lado, triste, ao vermos o quanto de nosso desenvolvimento é roubado (literalmente), e, por outro, esperançoso, de vivermos um momento de depuração na relação Estado-sociedade brasileiros. Nesse contexto, é natural que o essencial esforço investigativo da Polícia Federal chegasse ao setor cultural. Mas acredito que o momento agora é de não deturpar o debate. Há que se separar o que é corrupção do que é um funcionamento inadequado do sistema de subsídio à cultura brasileira. O primeiro assunto é caso de polícia, e o segundo, de profunda reflexão da sociedade civil, artistas e gestores públicos.
As políticas públicas estruturadas para a cultura no Brasil são muito jovens. Somente no início da década de 1990, quando o orçamento para a cultura diminui drasticamente e há o rebaixamento do ministério à condição de secretaria nacional, é que o Estado brasileiro lança mão de um instrumento de política cultural por renúncia fiscal, a fim de captar recursos no mercado privado para o financiamento de atividades e bens culturais: a Lei Rouanet.
O mecanismo é simples. O governo federal confere poder a representantes da sociedade civil para que escolham projetos que notadamente têm valor cultural e que receberão a permissão pública para captar recursos no mercado, sendo permitido que estes sejam deduzidos do imposto a ser pago pela empresa investidora. Após essa distinção conferida a algum projeto, o proponente pode, então, ir ao mercado e acionar o empresariado para angariar fundos a fim de viabilizá-lo. Parece uma equação exata: diminuem-se os custos da burocracia, evita-se a ingerência política do Estado, antecipam-se recursos, dividem-se custos com a iniciativa privada na parcela de projetos que requerem alguma contrapartida e mobiliza-se a sociedade empresarial. Contudo, a equação é errática. Esse modelo tem imperfeições que o tornam ineficiente como instrumento e carente de lógica pública como conceito. Em um plano conceitual, estamos conferindo ao empresariado poder para definir uma grande parte do investimento público em cultura. Imposto não pago é dinheiro público, e a decisão seletiva em última instância sobre o investimento em cultura é do empresário (ou melhor, do seu gerente de marketing). Esse agente econômico tem poder de influenciar o mercado e os tipos de bens culturais disponíveis para a sociedade.
Por outro lado, a Lei Rouanet não tem servido para dinamizar a Economia da Cultura e dar pluralidade ao mercado: gera concentração e não influencia positivamente a estruturação da cadeia produtiva. De acordo com dados do Ministério da Cultura, no ano de 2014, 6.057 projetos foram aprovados a captar R$ 5.785.807.436,53 em recursos, sendo que 3.273 obtiveram sucesso. Foram efetivamente captados R$ 1.278.169.782,73 por pessoas jurídicas e R$ 42.137.678,16 por pessoas físicas. Ou seja, 50% de efetividade no número de projetos que de fato captaram e apenas 20% do valor total aprovado. Concentração é a palavra de ordem. Concentração esta que gera poder monopolista (o mesmo que permite desvios como a fraude em tela).
Com todos esses problemas, será que os conservadores, machistas, retrógrados, felicianos e plutocratas estão com a razão em defender a suspensão dos recursos públicos para a cultura?
Certamente que não. O setor cultural é muito menos subsidiado do que poderia ou deveria ser. Tem subsídio total de R$ 1,7 bilhão contra R$ 23,3 bilhões das entidades sem fins lucrativos (como as igrejas, por exemplo), R$ 2,1 bilhões só para o setor automotivo e R$ 3,4 bilhões para a Olimpíada (dados de 2016). Entre os ministérios, é o terceiro menor, com renúncia fiscal maior só do que Comunicações e Cidadania.
A cultura como eixo de desenvolvimento e ativo econômico deve ser estratégica em um país rico em valor e bens culturais como o Brasil. O problema, portanto, é claramente sistêmico. Temos de refundar nosso sistema de subsídio e pautar políticas culturais que incorporem proteção e apoio estruturante ao que não tem mercado, cumuladas com um amplo programa de incentivos ao empreendedorismo cultural para gerar retornos sociais e econômicos que beneficiem a todo o sistema.
*Professor de Economia e coordenador do Grupo de Trabalho Economia Criativa, Cultura e Desenvolvimento da UFRGS