No final de semana passado, entrou para a lista dos livros mais vendidos A verdade sufocada, de Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório torturador da ditadura militar. Para muitos, o nome de Ustra ficou conhecido há pouco, quando foi homenageado por Jair Bolsonaro na votação do impeachment na Câmara. Não se pode mais tomar esse fato como algo isolado: vêm crescendo manifestações favoráveis não apenas à ditadura, idealizada como tempos de ordem e paz, como também a formas atuais de violência de Estado, inclusive as cometidas à margem da lei, como execuções e torturas.
Desde 1985, ano em que oficialmente terminou a ditadura civil-militar iniciada em 1964, muito pouco se fez em termos de construção de memória relativa àquele período. Não temos memoriais e museus da ditadura, e a maioria dos brasileiros tem apenas uma vaga ideia sobre o que aconteceu naqueles tempos. Apenas mais recentemente, com a criação da Comissão da Verdade e com o incremento de produções documentais e ficcionais sobre o tema, este passou – timidamente – a habitar a esfera pública.
A memória, em sua dimensão tanto individual como coletiva, é fundamental para a sobrevivência humana. Chegamos ao mundo com uma programação instintual exígua, por isso precisamos que nos transmitam o legado humano: linguagem, hábitos, saberes. Não fosse essa transmissão da memória, cada um teria de reinventar a roda a cada vez, pouco teríamos ido adiante. Somos habitados por impulsos que muitas vezes nos levam à autodestruição; para não sucumbir a eles, preservamos e transmitimos a memória.
Nossa memória, porém, é frágil e enganosa: não representa os fatos como aconteceram, mas é uma narrativa sobre eles. É frequente pacientes em análise buscarem outras versões de sua história com parentes, investigando fotos e documentos para preencher lacunas que surgem ao relatar o passado. Entendendo melhor sua história, com suas complexidades, conseguem viver melhor, pois muito do sofrimento atual radica em visões simplificadas de experiências passadas. Construir memória é condição para viver o presente e o futuro, sobretudo para pensar e agir diferente do passado. Essa construção tem sempre um aspecto coletivo: é preciso que seja testemunhada por alguém que a aceite para que tenha valor de verdade.
Os discursos e posições simpáticos à ditadura que temos testemunhado indicam que não há um consenso mínimo, até então suposto à maioria, de condenação da ditadura e desejo de não repeti-la. Isso talvez seja assim por haver um profundo conflito em nosso laço social, visível nas ruas, nas relações, nas redes sociais. Mas esse consenso não será possível enquanto não fizermos o difícil trabalho de rememorar coletivamente aquele período, dando voz aos testemunhos de quem viveu à época, expondo e conhecendo fatos, versões e documentos.
O silêncio que se seguiu ao fim da ditadura talvez tenha servido para abafar esse conflito e poupar-nos dessa dolorosa tarefa, mas o barulho que hoje se faz ouvir indica que isso não é mais possível. Se não encararmos de frente esse passado que nos persegue para torná-lo memória, corremos o risco de apenas repeti-lo, com poucos avanços. A responsabilidade por criar e transmitir essa memória não é apenas do Estado e daqueles diretamente envolvidos, mas de todos. Afinal de contas, é sobre todos nós que recai o efeito nocivo do silenciamento e da ignorância: a condenação à repetição.
Paulo Gleich escreve mensalmente para o Caderno DOC.