Elias Wehmuth
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Unisinos. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade do Minho e pós-graduado Lato Sensu em Cultura Clássica pela Universidade de Coimbra (ambas em Portugal)
Em 7 de março de 1876, foi concedida patente ao inventor do telefone, o escocês Graham Bell, que não imaginava que sua invenção pudesse revolucionar de tal forma a comunicação. Após 140 anos, o avanço tecnológico possibilitou passarmos dos antigos aparelhos telefônicos aos celulares, que nos permitem usufruir de equipamentos multifuncionais.
LEIA MAIS
> Legalidade de áudios de Dilma divulgados por Moro divide juristas
> Temer diz que vazamento de gravação foi "equívoco"
> Moro pede desculpas ao STF por "polêmicas" com áudios de Lula
Ocorre que nem sempre evoluir traz apenas respostas positivas. Basta lembrar, por exemplo, que não raras vezes os benefícios contidos nos celulares servem, também, como ferramentas contrárias aos costumes e princípios jurídicos, que buscam garantir o exercício dos direitos fundamentais. Os juristas sabem que, na mesma medida em que a sociedade se desenvolve, também as leis devem evoluir, todavia nem sempre isso é possível.
A Constituição de 1988, nascida após longo período obscuro, trouxe avanços sobretudo quanto ao catálogo de direitos e garantias fundamentais, especialmente porque se voltou para a preservação da dignidade da pessoa humana e a realização da cidadania, ou seja, "o direito a ter direitos", nas palavras de Hannah Arendt, algo inédito na ordem jurídico-constitucional brasileira.
O texto passou também a elencar os princípios da inviolabilidade da intimidade, da vida privada e do sigilo das comunicações telefônicas, cláusulas pétreas inegociáveis, mas relativizadas ultimamente.
Não há dúvidas de que o legislador buscou bem demarcar o território dos direitos fundamentais de cidadania, os princípios e valores éticos e morais como "referências-guia" para o amadurecimento social e institucional. Contudo, apesar de gozarmos de plena democracia há quase 28 anos, sem rupturas, nossa jovem democracia tem experimentado um período desafiador, em que os três poderes do Estado, sobretudo Executivo e Legislativo, têm presenteado ao país os piores exemplos de desrespeito aos bens públicos os quais deveriam ter a sociedade como únicos beneficiários, mas que têm sido espoliados com a corrupção sistêmica, resultado da fraqueza ético-cidadã-institucional.
Em tempos de Operação Lava-Jato, delações premiadas, interceptações e gravações telefônicas, vemos que na esfera da administração pública direta (União, Estados e Municípios) está o lugar mais carente da imposição ética, pois anda desobediente aos princípios próprios que a regem: legalidade, impessoalidade, eficiência e, sobretudo, moralidade.
Entre tantas revelações trazidas pela Lava-Jato, chamam atenção as interceptações telefônicas, em especial a partir da 24ª fase, que teve como principal alvo o ex-presidente Lula: foram divulgadas conversas mantidas por ele com políticos próximos, com destaque ao contato com Dilma Rousseff, diálogo "vazado" pelo juiz federal Sérgio Moro de forma irregular, pois o próprio já havia determinado o fim das interceptações horas antes.
Nos termos da Lei 9.692/96 (Lei do Grampo), as interceptações telefônicas são práticas lícitas que ocorrem sob sigilo. O objeto da investigação deve guardar congruência com as gravações, sob pena de serem inadmissíveis, configurando-se como prova ilícita, pois obtida a partir da violação das regras de direito definidas na própria lei. Ausentes tais requisitos, a ação persecutória, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de nulidade, constituindo-se como crime quebrar segredo de Justiça sem autorização, como ocorreu com o áudio entre Lula e Dilma – havia ordem para que cessassem os grampos ao telefone do ex-presidente quase duas horas antes da conversa, pelo que jamais poderia ter sido tornada pública, ainda que sob o fundamento do interesse público.
> Gravações inéditas sugerem articulação de Sarney e Renan contra Lava-Jato
> Em nova gravação, Renan orienta defesa de Delcídio Amaral
> Com delação de Machado, governo Temer tenta antecipar impeachment
> Juristas comparam caso de Jucá com o do ex-senador Delcídio Amaral
Ao quebrar o sigilo, Moro recebeu críticas contundentes de juristas do calibre de Celso Bandeira de Mello, Dalmo Dallari, Lênio Streck e do ministro Marco Aurélio pelo procedimento contrário à Lei do Grampo, à Resolução 59 do Conselho Nacional de Justiça (que prevê a responsabilidade do agente público ao divulgar conteúdo sob segredo de Justiça sem autorização), ao Código de Ética da Magistratura (que exige prudência e imparcialidade), bem como fomentou críticas à credibilidade da operação, pois foram ultrapassados limites legais e éticos.
Nesse sentido, percebe-se que a ética cidadã, um dos objetivos constitucionais, ainda não foi devidamente compreendida pelos membros da sociedade, tanto é que mesmo no âmbito do Judiciário, onde se espera rigoroso cumprimento da lei, fomos surpreendidos com a quebra ética de limites. Mas não só nessa esfera, também no seio do Executivo e do Legislativo, verificamos que nossos representantes ignoram princípios elementares, num "toma lá dá cá” promíscuo – obediência e respeito às condutas éticas que deveriam lhes distinguir são qualidades em extinção. Prova disso são as gravações de Sérgio Machado com Romero Jucá, Renan Calheiros e José Sarney, não autorizadas por lei, mas tão explosivas quanto aquelas apuradas pela Lava-Jato, que também escancaram a inexistência de limites ético-morais entre "parceiros" políticos, transformados da noite para o dia em inimigos desmoralizados e cúmplices chantageados.
Esse gigantesco jogo de interesses indica a pobreza do sistema político brasileiro e expõe tanto as fragilidades dos instrumentos legais de garantia da inviolabilidade da intimidade, da vida privada e do sigilo das comunicações e de seus detentores por função precípua, quanto as fragilidades das manobras "fora da lei" entre amigos e aliados da corte, que têm desvirtuado aquilo que efetivamente deveria ser do interesse público.
Um golpe desferido aos princípios democráticos, capitaneado pelos donos do "velho e novo poder", numa aliança suprapartidária com interesses de locupletamento do dinheiro público através dos meios tecnológicos mais modernos – Graham Bell ficaria admirado com as invenções que se criam em terrae brasilis –, em que corruptores e corruptos se integram, dilapidando o patrimônio moral, ético, econômico e legal do Estado, cujo contragolpe deve vir da nação, empunhando a Constituição-cidadã, pois ela há de renascer desse novo período obscuro, reorientando o rumo firmado nos princípios constitucionais, numa demonstração de que ninguém está acima da lei, sejam eles Lulas, Dilmas, Temers, Jucás, Cunhas ou Renans, ou mesmo Moro.