As grandes tragédias assombram as datas e locais em que ocorreram. Para 5 milhões de noruegueses, "22 de julho" e "Utoya" bastam para desencadear memórias de um pesadelo nacional, como "11 de setembro" e "Torres Gêmeas", como "13 de novembro" e "Bataclan". A Noruega nunca mais foi a mesma depois de 22 de julho de 2011, um dia chuvoso de verão em que Anders Behring Breivik alvejou e matou 69 pessoas na ilha de Utoya. Ele invadira o acampamento anual da Juventude do Partido Trabalhista, por isso quase todas as vítimas eram adolescentes. Um pouco antes, havia assassinado oito pessoas com uma bomba plantada em frente a um edifício do governo, em Oslo.
Como toda a Noruega, a jornalista Åsne Seierstad ficou em choque com o que foi considerado o maior ataque terrorista no país desde a II Guerra Mundial. Convenceu-se da importância de "registrar o horror do dia para que não seja esquecido". Com o livro Um de nós (Tradução de Kristin Lie Garrubo. Record, 560 páginas, R$ 54,90), ela cumpre essa proposta tão bem que a leitura torna-se dolorosa, quase insuportável.
Leia mais:
>>> Norueguês que matou 77 declara-se inocente em julgamento
>>> Autor de matança na Noruega ganha processo por tratamento desumano na prisão
>>> Åsne Seierstad fala sobre O Livreiro de Cabul
Escrito como uma grande reportagem, o livro de Seierstad avança sobre a psicologia de Breivik e sobre os debates políticos relativos à imigração na Noruega e na Europa. A tragédia de Utoya começa bem antes de 2011, com uma mãe que na infância sofreu maus-tratos e acabaria fazendo o mesmo com o filho. Com um pai, divorciado e morando em outro país, que só ofereceu indiferença e rejeição. Breivik cresceu como um menino incapaz de fazer amigos e que brincava de torturar animais, revela o livro, com ajuda de entrevistas e antigos relatórios psiquiátricos.
Da adolescência à vida adulta segue deslocado, sem vida social nem profissional. Viciado em videogames, Breivik logo troca as batalhas de World of warcraft por um ímpeto de luta real quando entra em contato com blogs e fóruns anti-imigração que o convencem de que os imigrantes muçulmanos eventualmente dominariam o Ocidente e dizimariam cristãos e judeus. Breivik passa a dedicar meses à escrita de um manifesto a favor de uma sociedade patriarcal, casta e sem divórcio (reivindicações que o aproximam, aliás, de extremistas muçulmanos). Seu grande ódio é dirigido aos "multiculturalistas", que lutavam por políticas pró-imigração. Por isso ele faz de Utoya o alvo: lá estavam reunidos futuros líderes políticos da Noruega.
Convencido de que o Ocidente precisa ser salvo da "islamização", Breivik começa a se armar em 2010. Sai da casa da mãe para um sítio isolado. Um diário mantido nesse período permite que o livro retrate os meses de preparação com disciplina militar para os ataques. Sua rotina incluía exercícios diários, estudos e compra de equipamentos.
O dia do atentado é reconstruído nos mínimos detalhes e sob as perspectivas de muitos personagens. O leitor é levado a caminhar com Breivik pela ilha em sua caçada aos jovens, sente o pavor dos adolescentes em sua busca por esconderijos e ainda toma ciência de erros estúpidos da polícia (enquanto equipes erravam o ponto de encontro, Breivik matava uma pessoa por minuto).
Ao contar quem eram algumas das vítimas e como suas perdas foram sentidas, Seierstad não esconde o afeto que desenvolveu por cada uma. Dentre elas, destaca-se Bano Abobakar Rashid, descendente dos imigrantes que Breivik tanto odiava e que, como ele, queria desesperadamente pertencer à Noruega. Sua trajetória é inserida no contexto das ondas migratórias que chegaram ao país e os efeitos que surtiram nas políticas nacionais. Em momentos assim, o livro cresce e transforma-se numa grande contribuição ao debate atual sobre refugiados e islamofobia na Europa. Bano simboliza as famílias em busca de asilo. Breivik, a radicalização da extrema-direita. E, no meio disso, o problema de como integrar refugiados em uma cultura tão díspar. Famosa pelo livro O livreiro de Cabul, acostumada a coberturas em áreas de conflito no Oriente Médio, Seierstad é uma voz qualificada como poucas para destrinchar esse assunto.
Por trás da barbárie, a escritora encontra uma criança ignorada, um adolescente rebelde, um adulto solitário, narcisista e megalomaníaco que decidiu se tornar um protagonista da sociedade pela qual foi rejeitado. O irônico é que a mídia o presenteou com o que ele queria: atenção. Em seu julgamento, enquanto o país inteiro debatia se o réu era um terrorista político ou um louco e, portanto, se era imputável ou não, o atirador usava o tribunal como plataforma de divulgação da sua cruzada xenófoba.
Seierstad não descarta Breivik como aberração: ele é "um de nós". Seu ódio é uma versão radical de preconceitos rotineiros que precisam ser encarados em tempos de ascensão da extrema-direita europeia.