Daqui a uns poucos dias se completarão 20 anos da morte do Luiz Sérgio Metz, vulgo Jacaré, um grande talento literário que a injusta morte nos privou de aproveitar em sua totalidade. Havia apenas um ano que ele publicara o genial Assim na Terra, uma novela de iniciação, um relato de viagem, uma meditação sobre ser do sul do mundo, tudo isso junto – como o prezado leitor poderá comprovar na recente reedição, em alto estilo, feita pela editora CosacNaify em 2013.
Vinte anos! Os livros que ele teria escrito nesse tempo!
Cá na minha memória ainda escuto a voz rouca dele, preparando uma piada sutil, ou num daqueles mágicos momentos de conversa que tivemos, por poucos anos mas muito intensamente.
Então o certo seria parar tudo e voltar ao livro, aos outros livros e escritos dele, agora mesmo. Todo mundo. Suspender tudo que um valor altíssimo de alevanta.
Mas não: estão lá o tenebroso Cunha, o sinistro Temer, incompetente em seu metiê de vida toda, a manobra de bastidores e a pose de grande figura. Está lá, sem parar de assustar e doer, o estupro coletivo da moça carioca, horror elevado a alta potência que corresponde ao medo cotidiano e silencioso de tantas mulheres. Está o país paralisado com essa mixórdia armada por sucessivos equívocos e patifarias. Estamos todos submetidos à sórdida ditadura do prazo exíguo, que nos pressiona o peito para aceitar termos impagáveis.
Tentando olhar a coisa em perspectiva: esse horror que temos vivido, há mais de ano, no parlamento nacional (mas também na escala local, como um certo vereador porto-alegrense que fez passar uma ridícula moção de repúdio a ação universitária, da UFRGS), tem raízes profundas. Uma se aloja no coração da história das elites-cracas, que grudam no aparelho público e dele se servem gerações a fio. Outra chega ao seio do mais recôndito coronelismo, o antigo e o novo, este agora sob roupagem surpreendente de variações do cristianismo.
Mas outra raiz dá de cara com a ação de parte importante da esquerda, para quem o parlamento é coisa a ser mesmo negligenciada, porque se trataria apenas de jogo burguês, irrelevante quando não pernicioso para os interesses da revolução. Numa hora ruim como a que vivemos, é possível avaliar quão nefasta é essa visão da coisa, essa prática da coisa.
Como é que vou celebrar devidamente os 20 anos de ausência do Jaca com esse tumulto todo solicitando atenção?
Uma das imagens que ele gostava de mencionar era a do "tempo da delicadeza", uma das tantas conquistas feitas para nós, usuários do Português, pelo Chico Buarque (nem lembrei das antas que rosnam contra o Chico na presente conjuntura).
O tempo da delicadeza é aquele que não existe mais, claro, mas vez em quando reponta na vida real:
No prêmio Camões atribuído ao Raduan Nassar, autor de uma obra tão enxuta quanto importante, definitiva, capaz de nos transportar a todo um mundo de invenção que – estamos falando de arte narrativa – se parece muito com alguns pesadelos nossos amigos e parentes.
Na ocupação de escolas pela garotada, gritando até mesmo em silêncio para nos lembrar que estamos em falta com eles, em coisa tão elementar quanto a educação pública.
*Luís Augusto Fischer escreve mensalmente no Caderno DOC.