"É um governo de m…, mas é o nosso governo." A frase, que evoca um slogan em defesa de Salvador Allende no Chile dos anos 1970, foi pronunciada pelo presidente nacional do PT, Rui Falcão, em março do ano passado, em um evento com sindicalistas e lideranças petistas. Analisemos essa declaração: o governo pode ser uma calamidade, mas é o "nosso governo". O que há por trás dessa afirmação? Por que evocar um episódio ocorrido há mais de um ano?
Em primeiro lugar, porque nossa linguagem política é, no mínimo, um repositório muito significativo de nossas convicções, de nossos valores e de tudo aquilo a que aspiramos em matéria de política. Os usos de palavras como "justiça" mostram muito bem isso: empregamo-la, por vezes, com significados diferentes, quando não antagônicos. Reivindicar um governo como sendo "nosso" é significativo: ao se manifestar desse modo, alguém pode estar dizendo apenas que faz parte de uma determinada composição governamental, ocupando algum cargo na máquina do poder de turno.
Esse é um sentido trivial em que um presidente ou ministro pode dizer "é um governo ruim, mas é meu". Declarar algo do gênero seria, nesse caso, a confissão de um equívoco fundamental: ocupar um cargo público dessa natureza é representar, por meio de instituições e de processos políticos, a sociedade como um todo. Se o governo é ruim, o governante não pode pensar como se fosse o seu time de futebol: "É ruim, mas é meu, não quero saber de críticas de outras torcidas".
O que nos leva a outro motivo para tratar do tema. Os quase 14 anos de lulopetismo no Brasil criaram uma situação de bloqueio à crítica séria graças à adoção, por parte de intelectuais, acadêmicos, jornalistas e lideranças da sociedade civil, dessa atitude servil e sentimental do "nosso governo". Diante dos épicos escândalos de corrupção em que o petismo foi flagrado, o roteiro de parte do professorado – dos mais sofisticados uspianos aos mais simplórios reprodutores da vulgata petista –, de articulistas ditos progressistas na imprensa e de lideranças da sociedade civil que se julgam de esquerda foi sempre o mesmo: qualquer alternativa ao "nosso governo" (quer dizer, ao governo do PT) é inaceitável; por pior que seja o "nosso governo", ele é melhor do que qualquer outro; não importam a dimensão do estrago econômico ou a objetividade material e jurídica das provas dos crimes dos líderes do PT, o "nosso lado" é melhor, afinal, é "nosso".
Não vamos nos livrar facilmente dessa mentalidade totalitária e mistificadora – e é isso, precisamente, o que está por trás do uso da expressão "nosso governo" quando empregada pelos soldados da fé no Partido e no Líder: uma visão totalitária da política. Ainda assim, demos um primeiro passo com a remoção de Dilma Rousseff da presidência: lideranças da sociedade civil, intelectuais e acadêmicos, jornalistas e demais formadores de opinião que se posicionaram em favor do impeachment passaram as primeiras semanas de novo governo sem abrir mão das críticas e da condenação dos novos e provisórios donos do poder. Flagrantes de corrupção, maquinações contra a Lava-Jato ou mero erro político: não importa, a crítica é e deve ser a tônica. Afinal, este é apenas mais um governo, e ele só é "nosso" na medida em que deve nos servir a todos, como brasileiros, dando seu melhor para tirar o país da crise e manter-se dentro da lei.
*Eduardo Wolf escreve mensalmente no Caderno DOC.