Pode haver algo de puro nos analfabetos, afinal assim nascemos e assim passamos a primeira infância, em um mundo de fantasia em que é normal se acreditar em deus, Papai Noel e amigo imaginário. Talvez possamos preservar na vida adulta a pureza da criança sem seus fantasmas, pois já sabemos o valor de livro e pensamento, e as vantagens de ser alfabético. Vivemos, todavia, em um pedaço do mundo tristemente analfabético, e pagamos caro por isso, pois restamos sem a graça da infância, somente com seus e nossos fantasmas.
Quando nosso conterrâneo acha que as leis de Newton ou as teorias de Darwin são teses comparáveis à mitologia criacionista e que essas explicações podem ser oferecidas aos estudantes em um menu em que se escolhe visão de mundo a la carte, neste caso faltaram letras para se discernir como superamos eras de trevas. Chegamos ao século XXI com a pior parte das crenças de 5 mil anos atrás. Este vizinho crente está pronto para sacrificar a liberdade em prol da fé, substituir terapia médica por orações e exorcismo e, no pior dos casos, cogitará nomear ministro de Ciência e Tecnologia um bispo de igreja pentecostal. Chegaremos a tal ponto do analfabetismo?
Outros ágrafos sonham que seu estamento social foi predestinado para colher benesses e ter vantagens impossíveis para os demais concidadãos, porém plenamente merecidas, como assopra o anjinho da autoindulgência. Este sonhador julga que é decente que ele ganhe 50 vezes mais do que um colega que trabalha no mesmo prédio, mas que teve o demérito de nascer sub-humano, em um corpo calejado e fétido. Faz parte dessa crença em Papai Noel assegurar-se vantagens retroativas a qualquer tempo, pouco importando a condição fiscal do cofre que lhe paga, o sentido de justiça ou a contestação ética de amigos alfabetizados. Este analfabeto onírico deve crer no bom velhinho, mas custa a crer que seu sonho é mantido à custa do pesadelo de outros profissionais dignos, que mesmo que estudem e trabalhem heroicamente jamais verão o trenó chegar festivo em sua conta bancária, quantas vezes a libido antinormativa demandar. Duendes declaram-lhe: és um eleito do destino, os outros que se virem, pois o presenteador lapão também é meio analfabeto e só lê as listas de quem é bonito e cheiroso. Estes analfabetos não conseguem ler a palavra essencial de toda a sociedade juridicamente ordenada: isonomia.
Há ainda os analfabetos que acreditam no poder mágico do amigo imaginário, que atende pelo lindo nome de mão invisível, aquele mito do século XVIII, ainda saudado como se contemporâneo fosse pelos que não leem livros em era alguma; estes acham que a desigualdade social não é um problema e que a concentração de riqueza é fonte de virtudes, razão da felicidade. Este inimigo das letras crê que ensino público de qualidade é parte de uma conspiração para que o monstro Leviatã lhe roube a condição essencial de seus prazeres: a propriedade privada isenta de tributos. É natural que este incauto chame de liberdade a sua mais clara negação, o egoísmo social, pois a junção dessas letras não faz o menor sentido; devemos seguir analfabetos, para que os pobres não aprendam a ler, pensar, compreender a realidade em que vivem e debater opções e destinos, pois isso será o princípio da desordem em um mundo inatamente feliz.
Ainda assim, mesmo vivendo entre mitômanos que acham que a farsa pode se fazer história, seguiremos, leitores, lutando por um mundo com mais e melhores letras e pensamentos.
* Francisco Marshall escreve mensalmente no Caderno DOC.