Gosto de imaginar o mapa-múndi que certas pessoas carregam na cabeça. As pessoas são bem seletivas para tudo, e é claro que não poderia ser diferente quando se trata da representação planificada de nosso mundinho. Por exemplo, os que se identificam com a direita gostam muito de falar em Cuba e Venezuela. Parece que, para eles, a única nação da América Central que não tem o poder da invisibilidade é Cuba. Honduras, Costa Rica, o quê? Indo na direção sul, a Venezuela é aquele pedaço de terra cercado por não-interessa-o-quê cuja função consiste em nos provar que políticas assistencialistas resultam em pobreza e convulsão social.
Da mesma forma, no mapa da esquerda exaltada, quase todo o mal que já pisou na Terra esfregou suas botas militares e seus sapatos sociais no solo dos Estados Unidos, enquanto as pessoas mais inocentes do mundo tendem a se concentrar em um lugar chamado Palestina. Tudo isso é brincadeira, mas provavelmente não estou tão longe da verdade.
Agora que Michel Temer foi alçado a presidente interino, discussões sobre "o tamanho que o Estado deve ter" se intensificam. O tópico abarca assuntos como privatizações e Bolsa Família, e costuma criar um embate entre defensores do Estado mínimo e simpatizantes do Estado de bem-estar social. É o momento em que esses mapas muito pessoais são acionados. Ah, os Estados Unidos! Ah, a Venezuela!
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Mas que tal ampliarmos um pouco o repertório? Até a literatura pode ajudar nisso. Estou lendo o terceiro volume da série de Karl Ove Knausgård, que joga os holofotes sobre sua infância. De que outro jeito eu poderia chegar tão perto de alguém que cresceu no interior da Noruega uns 15 anos antes de mim? Durante a leitura, senti inveja. Karl Ove andava por tudo, casa de amigos, floresta, litoral, sozinho, de bicicleta! Tinha sete anos! Seu irmão, um pouco mais velho, assava bolinhos. Que criança no Brasil dos anos 1970 assava bolinhos? Coloque a empregada para assar! Estamos recém começando com isso, e provavelmente essa família dos bolinhos feitos por uma criança será chamada de "esquerdista radical". Isso são suposições. O que posso afirmar é que, na idade em que Karl Ove descobria o entorno da sua casa, eu estava dentro de um shopping.
A política tem uma grande parcela de responsabilidade nisso: Karl Ove correndo livre, eu presa dentro de um shopping. Sei que minha vida poderia ter sido pior; que tive a sorte de nascer em uma camada privilegiada da sociedade brasileira. Mas é inegável que todos, em maior ou menor grau, sofrem com os níveis grotescos de desigualdade desse país.
E a Noruega? Ela tem o título de nação mais democrática do mundo (nessa lista, o Brasil está em 44º lugar). Características da Noruega? Uma forte presença do Estado em quase todos os campos da economia; com um sistema quase perfeito de bem-estar social, 2,8% do PIB é destinado para apoiar jovens papais e mamães. E aqueles que optam por não levar as crianças para a creche recebem mensalmente um cheque do governo para ajudar nos gastos.
Parece que eles têm "assistencialismo". E "cotas" também: as empresas norueguesas são obrigadas a dar 40% das vagas de seus conselhos para mulheres. Enquanto isso, aqui, bem, você sabe. O problema não é o tamanho do Estado. O problema é o tamanho da corrupção e da desigualdade, que rouba de todos nós a chance de termos a infância de Karl Ove.
>>> Carol Bensimon escreve mensalmente no Caderno DOC.