Tatiana Zismann
Mestre em História pela PUCRS e Doutora em Literatura Comparada pela UFRGS
O mundo vem acompanhando, nos últimos meses, a corrida eleitoral para a presidência dos EUA. A estrela resplandecente é o bilionário Donald Trump, e não é apenas pelo loiro suspeito dos seus cabelos. O candidato baseia sua campanha na desqualificação de imigrantes latinos e de muçulmanos, chegando às raias do absurdo ao pregar a edificação de um muro na fronteira com o México, país exportador de "criminosos", "narcotraficantes" e "violadores". A virulência das palavras chegou a impactar os próprios conservadores, mas nem mesmo a contrariedade de alguns colegas de legenda, as tentativas de frear seu discurso pautado na ignorância e no ódio e os protestos dos especialistas em política externa chegaram a barrar o avanço de sua candidatura, e é cada vez mais iminente o perigo que representa a sua chegada à Casa Branca. Trump não se abala nem mesmo com as críticas a seu cabelo. Seus opositores divertidamente chegaram a afirmar que seu topete é ilegal. Sua vaidade, no entanto, tal como suas convicções, é inabalável.
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Trump empilha signos excludentes e raivosos para edificar os muros simbólicos de seu possível governo. Se vier a ganhar as eleições em novembro, não governará uma nação para todos. Sua representatividade restringir-se-á aos que estão nos limites da cidadela cristã e branca. Esqueça qualquer política de coexistência social, empatia cultural ou dinâmica integradora solidária pautada no pluralismo e no diálogo.
A campanha atiça a paixão de um eleitorado sensível às diferenças culturais, solapando a tolerância ao enxergar no outro o perigo supremo. Alimenta-se o medo irracional ao diferente, o que redunda na afirmação da intolerância, da xenofobia aguda, da islamofobia, do preconceito antilatino e de tudo que possa macular a essência pura da nação. Nessa lógica, ocorre a negação do outro na construção simbólica da identidade nacional. O outro é reduzido – jamais interpretado – à condição de objeto. É do medo, da diminuição e da consequente negação do outro que se estabelece a base simbólica de um possível governo Trump. O futuro é o retrocesso da nação fechada sobre si mesma, temerosa da ameaça cultural externa, que muito me lembra o horizonte de uma cidade medieval, avessa à troca e à abertura. É um cenário atemorizante para qualquer alteridade. A representação do outro, mediante a mobilização do medo, do ódio e do asco, como contextualizou Edward Said na sua obra Orientalismo, "nunca foi mais evidente do que em nosso tempo".
No outro lado do Atlântico, na velha Europa, a disputa entre o conservador Zac Goldsmith, descendente de uma rica e tradicional família, e o trabalhista Sadiq Khan, filho de imigrante paquistanês, pela prefeitura de Londres se centrou nos embates sobre raça e religião, obliterando questões relevantes como a moradia e o alto custo dos transportes públicos. Khan foi acusado de compartilhar a tribuna do Parlamento com extremistas islâmicos, Goldsmith, de fobia ao Islã. A vitória de Khan é uma afirmação das urnas contra estereótipos. Filho de imigrantes paquistaneses que vieram a Londres nos anos 1970, estudou em uma escola pública. Seu pai, homenageado em seu discurso de posse no último dia 7, foi motorista de ônibus e sindicalista. A mãe costurava e cuidava dos oito filhos, que cresceram em uma moradia social. É torcedor do Liverpool e afirma já ter sido vítima de inúmeros insultos racistas da torcida do Chelsea. Na juventude, foi um boxeador em seu bairro, ao passo que seu antagonista joga críquete e estudou no elitista Eton College.
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O discurso de Khan é a antítese do ódio desagregador de Trump, ao pregar a união para fazer de Londres uma cidade de oportunidades, onde cada cidadão possa se beneficiar, como ele se beneficiou. Ainda que Khan seja de confissão muçulmana (reza em uma mesquita perto de sua casa), não leva barba, e sua esposa, Saadiya Ahmed, não usa véu. Sua religião não o impediu de votar, como parlamentar, a favor do matrimônio homossexual, em concordância com sua carreira anterior, a de advogado defensor dos direitos humanos.
Sua vitória sinaliza a utopia para a mobilização de esforços que visem à coexistência pacífica e o desenvolvimento horizontal na multicultural Londres, que tem impressa a diferença em seu DNA. Ela sinaliza a reformulação de distopias em uma Europa que teme pelas suas bases identitárias, acossadas pelos outros que adentram, aos milhares, suas fronteiras: imigrantes ou refugiados.
O sociólogo Zygmunt Bauman, em sua obra Europa: uma Aventura Inacabada, afirma que o continente fez mais história do que podia consumir localmente e é precisamente o contato incessante com o outro e as consequentes negociações advindas desse contato com o diferente – quer pelo reconhecimento, quer pelo rechaço – que fizeram da Europa a força-motriz que construiu a própria universalidade estruturante não somente de sua história, mas também das narrativas totalizantes da modernidade ocidental. A história construída globalmente pelo continente sofre, no século 21, o impasse da permeabilidade das fronteiras. Uma Europa fechada sobre si mesma seria a própria negação da essência da identidade europeia. A diversidade é flagrante nos grandes centros onde a alteridade é negociada todos os dias em constantes ressignificações.
Em 2010, testemunhei uma cena pitoresca em Londres, um verdadeiro choque de alteridade que pode exemplificar esses processos de identificação. Em uma tarde de sábado, em um corredor do Museu de História Natural, um jovem inglês gritava repetidamente: "Isto não é a Inglaterra!". Ele era de Newcastle e se dizia chocado com a paisagem multicultural londrina – de fato, mais de 50% da capital é constituída de britânicos não brancos. Para o ruivo inglês, era perturbadora a paisagem fenotípica que em nada lembrava a cidade de origem.
Khan instaura um marco político ao se eleger o primeiro prefeito muçulmano em uma grande cidade do Ocidente, tornando-se um exemplo de filho de imigrantes que, sem renunciar às suas origens e à sua religião, assimilou os valores da democracia ocidental. No discurso da vitória, afirma que trabalhará por uma moradia honesta, por um transporte público acessível a todos e por empregos melhor remunerados. Trata-se de um discurso agregador que, espero, consiga integrar na prática os desafios da cidade. Ao escolher uma catedral anglicana para a cerimônia de posse, Khan dá o primeiro passo para "representar a todas as comunidades sem exceção", como afirmou. Londres tem 12% de habitantes muçulmanos. Ao receber 56,8% dos votos, torna-se evidente que não é pela diferença que Khan foi eleito, mas por sua ênfase em conciliar as diferenças ou para buscar o "equilíbrio de antagonismos", para usar uma feliz expressão de Gilberto Freyre. Esse é um desafio que se constrói com pontes, não com muros.