Fabiano Mielniczuk
Professor de Relações Internacionals da ESPM-Sul e diretor da plataforma educacional Audiplo
O mundo observa estarrecido a emergência de Donald Trump na política dos Estados Unidos. Consenso negativo nos principais órgãos da imprensa norte-americana e no establishment de seu próprio partido, o candidato garantiu a vitória nas prévias republicanas após a desistência de Ted Cruz. Pouco antes de abandonar o processo, Cruz o chamou de "mentiroso patológico", ao ver seu pai ser acusado pelo bilionário nova-iorquino de participar da trama envolvendo o assassinato do presidente Kennedy. Trump coleciona um bom número de comentários pouco elogiosos das mais variadas origens. Para o recém-eleito prefeito de Londres, Sadiq Khan, é ignorante no que se refere ao Islã. Para a prefeita de Paris, ele é burro. O ministro das Relações Exteriores da Alemanha afirmou, em tom diplomático, que o republicano é contraditório. Hillary Clinton, sua provável concorrente nas eleições nacionais, subscreveu as palavras da senadora democrata que o acusou de racista, sexista e xenófobo. O sempre elegante Barack Obama referiu-se a Trump com um conselho: "Em política e na vida, ser ignorante não é uma virtude". A avalancha de críticas reforça a incredulidade de intelectuais e analistas políticos. Como assim: Trump?
A explicação para o fenômeno é complexa. Alguns analistas apontam para a decadência intelectual do partido republicano, principalmente após os anos do governo George W. Bush (2001 – 2009), conhecido por seus discursos repletos de frases sem sentido. A falta de brilhantismo intelectual era compensada pela tradição de sua família na política americana. Bush era filho de ex-presidente, irmão de governador e tinha sido ele próprio governador de um Estado importante, o Texas. Vitorioso em um pleito marcado por acusações de fraude no Estado governado por seu irmão, a Flórida, substituiu o presidente democrata, Bill Clinton. A derrota democrata deu-se após o desgaste causado por um processo de impeachment que tinha como base a acusação de perjúrio relacionado à prática de relações sexuais entre Clinton e uma ex-estagiária da Casa Branca. O escândalo Monica Lewinsky reforçou o clima de crise dos valores tradicionais que norteou a agenda conservadora de Bush. Em seu governo, suas posições a favor da família heterossexual, do ensino do criacionismo em escolas públicas e a prioridade dada à segurança nacional em detrimento de liberdades fundamentais equilibravam-se fragilmente com a defesa da primazia das forças de mercado sobre o Estado.
Os atentados de setembro de 2001 serviram como justificativa incontestável para a postura mais intervencionista do governo a fim de proteger a sociedade americana da ameaça terrorista. Os gastos militares aumentaram com a ocupação do Iraque, e a reeleição foi garantida com o apelo à unidade do país em guerra contra forças estrangeiras. Nessa conjuntura, até discursos sem sentido faziam sentido, e sobrava pouco espaço para criticar o comandante-em-chefe das forças armadas. O consenso dos conservadores em torno de Bush se rompeu durante a crise econômica internacional, em função da opção governamental por salvar grandes bancos, seguradoras e gigantes do setor automotivo. A reação foi o surgimento do Tea Party, cujo objetivo era reconciliar a agenda social conservadora com a diminuição da ingerência do Estado na economia. Para tanto, dever-se-ia abandonar os políticos tradicionais e apoiar outsiders que garantissem os principais objetivos do movimento, a saber, responsabilidade fiscal, Estado mínimo e livre -mercado. A desconfiança alimentada pelo Tea Party contra políticos tradicionais dentro do Partido Republicano é, portanto, uma parte importante da história sobre a emergência de Trump.
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Uma outra dimensão do fenômeno pode ser explicada pela análise do período pós-Bush. O governo de Obama representou o oposto da agenda de conservadorismo social e Estado mínimo. Durante seu mandato, o presidente mudou sua posição pessoal e passou a apoiar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essa nova perspectiva foi fundamental para que a Justiça considerasse inconstitucional o Ato de Defesa do Casamento, legislação federal dos anos 1990 que limitava os direitos de casais homossexuais. Esse ativismo presidencial mostrou-se vitorioso quando a Suprema Corte Americana resolveu considerar o casamento de pessoas do mesmo sexo como um direito legal que não pode ser negado pelos Estados americanos. Além disso, Obama propôs uma alternativa para que imigrantes ilegais regularizassem sua situação no país e evitassem a deportação, medida que o colocou em conflito com mais de 20 Estados governados por republicanos. O presidente também manifestou-se publicamente a favor do controle da venda de armas e passou a defender mudanças na legislação para alcançar esse objetivo. Por último, os EUA avançaram rumo a um novo e inédito sistema de saúde, oferecendo aos mais pobres o direito a um seguro-saúde subsidiado pelo governo. Todas essas mudanças foram debatidas com acrimônia no Congresso americano e deram origem a batalhas jurídicas acompanhadas de perto pela população. Nesse sentido, o ativismo de Obama proporcionou uma sensação, bastante divulgada pelos meios de comunicação mais conservadores, de que o presidente agia acima do Congresso de maneira a contribuir para a polarização da sociedade.
O fato é que a agenda conservadora retrocedeu, e esse processo reforçou a ojeriza dos republicanos a políticos tradicionais. É aqui que entra Donald Trump, cujas principais virtudes estão alinhadas às expectativas mais conservadoras: ser um homem do mercado e um outsider da política partidária. Sua fortuna provém de negócios imobiliários e está estimada em US$ 4,5 bilhões pela Forbes. Isso lhe confere liberdade para financiar sua própria campanha, sem dever favores. Sua fama de bom administrador cresceu a partir do reality show O Aprendiz (no Brasil, estrelado por Roberto Justus), no qual se mostrava implacável ao avaliar o desempenho de jovens ambiciosos que competiam em tarefas preparatórias para uma carreira de empreendedor. A fama de empresário durão e bem-sucedido, alheio ao mundo político, lhe permitiu inclusive contestar as credenciais militares de John McCain, cacique republicano, senador e ex-vice presidente do país, que passou anos como prisioneiro na Guerra do Vietnã. Para completar, sua plataforma política se baseia na construção de um muro na fronteira com o México, a ser pago pelos mexicanos, e na deportação de 11 milhões de latinos vivendo ilegalmente em território americano; no fim do Obamacare e na desregulamentação do setor da saúde, de modo que a iniciativa privada e o mercado sepultem a intervenção estatal; e na defesa do direito dos americanos de comprar e portar armas de fogo. Trump também é contrário à legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Qualquer semelhança, às avessas, com a agenda política do governo Obama, não é mera coincidência.
Por fim, resta perguntar: quem vota em Trump? Cientistas políticos americanos começam, aos poucos, a traçar o perfil dos seus eleitores nas prévias republicanas. São os mais pobres, os quais têm maior propensão a ser contra o casamento gay, a favor da deportação de imigrantes ilegais e da construção do muro entre os EUA e o México e contra restrições ao uso de armas. Há, todavia, uma diferença entre o conservadorismo social e econômico: os republicanos mais ricos defendem a redução de impostos, enquanto os pobres são favoráveis ao aumento da carga tributária para os que ganham mais. Rápido, Trump já se manifestou a favor da análise dessa medida. Porém, entre seus eleitores republicanos, tanto ricos quanto pobres compartilham a mesma opinião de que os EUA são administrados por políticos desonestos a serviço de grandes interesses. É, portanto, a descrença nas instituições políticas da democracia americana que impulsiona a projeção de uma figura tão controversa como Trump, em um cenário marcado pelo crescimento do conservadorismo e pela polarização da sociedade a respeito dos direitos das minorias. Que isso sirva de alerta para os possíveis resultados da crise de legitimidade política que enfrentamos no Brasil.