*Samir Machado de Machado – Escritor, autor de Quatro Soldados
Diz o ditado que quem não conhece a História está fadado a repetir seus erros; diz a piada que quem conhece está fadado a assistir aos demais os repetindo. Da parte que me toca, como romancista de ficção histórica, minha cabeça habita o Brasil do século 18 por tanto tempo que, a certo ponto, se torna impossível não ver as ligações diretas entre nosso passado colonial e nosso presente republicano. Quando surge uma ficção histórica com níveis de produção tão altos como aparenta ser Liberdade, Liberdade, da Globo, há de se reconhecer o mérito.
Para se entender o Brasil que gerou Tiradentes, é preciso entender seu contexto: nosso século 18 era, ao mesmo tempo, reflexo e refém de Portugal, um reino extremamente devoto (“fanático” é sempre na religião dos outros), que exercia censura feroz sobre livros e a circulação de ideias, com a justificativa de que “não estava o povo português acostumado a ver na sua língua escritos que afervorem o espírito da dúvida, do exame, da independência e da liberdade”. Não se deve olhar o passado com olhos do presente, mas mesmo sob a visão da época Portugal era atrasado para os vizinhos europeus. O Brasil não podia produzir nada para si e dependia inteiramente de Portugal, mas também o reino não produzia nada, pois a sua Lei Pragmática – que regulava o uso de roupas, móveis, decorações em geral, restringindo os de luxo como exclusivos da nobreza – teve como efeito prático sufocar a indústria nacional portuguesa. Tudo se importava da Inglaterra, e num reino onde se proíbe por lei que a nobreza trabalhe, o resto do ouro das Minas Gerais ia para o pagamento das mesadas reais, as tenças e mercês. Era um reino endividado, que mal contava com um exército próprio para se defender, outra dependência da Inglaterra. Tudo iria bem enquanto houvesse ouro, mas ao final do século 18 surge o problema: o ouro das Minas começou a rarear.
Num século tomado de revoltas, em que quase não há momento em que não estourasse alguma no Brasil – todas reprimidas com violência pelo governo, tradição que se mantém até hoje –, o que diferencia a Conjuração Mineira de outra é seu caráter nacionalista. Os ecos da independência norte-americana se faziam sentir: não era mais uma rixa de “portugueses brasileiros” contra “portugueses reinóis”, mas entre brasileiros e portugueses. Um grupo eclético de intelectuais, poetas, naturalistas e militares gestou a ideia de uma república independente nas Minas Gerais ao longo de quase uma década. Se a revolta de fato estourasse, Portugal sabia que não teria como combater.
Mas por que só Tiradentes, dentre tantos, foi morto? Joaquim José da Silva Xavier era alferes da 6ª companhia de Dragões das Minas, onde se pode dizer, com ares de capa-e-espada, que combatia o crime. Os caminhos do ouro entre Minas e o Rio eram terras tomados por assaltantes, dos contrabandistas do Mão de Luva aos salteadores do cigano Montanha, do bando dos Virassaias ao dos Sete-Orelhas. Numa terra carente por mais médicos, era notório por seus conhecimentos de medicina e odontológicos, que lhe valeram fama de ser bom tira-dentes. Conhecia os moradores da região pelo nome, tocava violão nos bordéis e tabernas, era dos mais verbais defensores da Conjuração, e ponto de ligação entre os vários grupos sociais que a integravam. Em suma: era benquisto e todos o conheciam, o que fazia dele alvo ideal de punição exemplar (foi enforcado em 21 de abril de 1792 e teve seu corpo esquartejado e espalhado pelas estradas).
Por motivos óbvios, enquanto durou o domínio português, a memória de Tiradentes foi apenas uma lembrança punitiva a ser evitada. Somente um século depois, com a proclamação da República, que o país se viu necessitado de heróis nacionais para formar seu panteão. De Tiradentes não se conhecia nenhum retrato, então começa sua associação com Cristo – barba e cabelo longos (quando, de fato, nos condenados à morte eram raspados), olhar cândido de mártir. Por outro lado, tem-se um Judas na figura de Joaquim Silvério dos Reis – que foi somente um dentre seis delatores.
Não que isso seja demérito: o individualismo na figura de heróis nacionais tem a função de condensar em si a representação simbólica de movimentos muito mais amplos e abrangentes, e mitos nacionais são sempre formados de uma grande parcela de idealização sobre parcos fatos concretos. Há ficcionalização na história oficial tanto quanto há verdades históricas na literatura de ficção. Acrescente-se uma boa dose de violência estatal, injustiça social e delações premiadas e, do Brasil Colônia à atual Terceira República, mudam-se perucas e penteado, mas nem sempre os personagens.