"É que as pessoas estão esquecendo da importância do imperfeito", me disse ela no alto do prédio vendo o sol cair no Guaíba. O pôr do sol é um estado, mais do que um estar. Ela disse que eu sempre deveria começar os meus textos com frases perfumadas. Perguntei se ela já havia lido algum texto meu. Ela disse que não. Depois voltamos a olhar para o chão.
Os tapumes no Guaíba nos fazem sentir medo de uma Miami que virá. Concordamos que "revitalização" é só parte de um mercado que precisa de prazos de validade para continuar girando. O tempo das coisas duráveis acabou. Olhamos para o canteiro de obras que toma conta de parte da orla. Lembramos que sempre gostamos da nossa beira do rio do jeito que era. O que incomoda é a violência. Pensamos nos milhões sendo gastos em cimento e tijolo e, pela nossa matemática, investir o mesmo em segurança traria muito mais rápido essa tal de revitalização.
Descemos do prédio. Querendo uma cerveja, optamos pelo mais "perigoso" dos bares, aquele na esquina da General Portinho com a Andradas. Havia uma melancolia entre os frequentadores do bar, um medo de perder feio para o medo, e toda a fé na boemia. A cada gole, tentavam um pouco esquecer o que havia acontecido ali. Havia uma espécie de lei do silêncio no boteco dos 50 tiros. Ela achava um pouco estranho ter sido assim, tão na esquina de casa, tão na frente da praça, tão perto do futuro shopping. O futuro é um shopping? Olhei para a minha cerveja e ela estava vermelha. Depois me liguei que era só o sangue que ainda estava em nossos olhos.
O mais triste é que agora as crianças não querem mais brincar na praça. Lembram dos 50 tiros, dois corpos, férias de verão. O tempo das coisas que duram está ficando para trás. As árvores foram arrancadas pelo furacão. Nunca fez tanto calor. Cinquenta tiros é muito tempo para ainda não temer.
Ela tem certeza de que o único jeito de revitalizar o Centro Histórico é usando os seus espaços públicos, "do contrário, eles tomam conta". "Eles" são os habitantes do fundão da praça. A muitos interessa que a praça seja ocupada por sem-teto. É preciso matar uma área para que depois qualquer coisa, até um shopping, revitalize o lugar.
Perguntei se havia saída. Foi o nosso primeiro silêncio. Um tio sentado ao lado disse que concordava com nosso papo socialista, "mas mais importante é ocupar os espaços privados". Disse que as pessoas precisam ter uma relação econômica com o bairro. Depois, pagou a conta e foi embora. Um dos que ficaram disse que o senhor era "um vagabundo contrário ao shopping, não tem moral pra xingar vocês de socialista".
- Socialista não é xingamento.
Dois soldados dobraram a esquina, com mais medo do que nós. O álcool nos dá certezas, talvez por isso bebamos tanto. Talvez seja só o verão nos cobrando cervejas e pôr do sol.
- Foi às sete e meia que os bandidos entraram.
- Da manhã?
- Não, da noite.
De novo pensei nas crianças. Não há como não pensar nelas.
O Centro Histórico conserva o atemporal e a capacidade da fábula. Quem escolhe morar nele opta pelos personagens que a arquitetura traz. Caminho a André da Rocha e lembro dos crimes da Rua do Arvoredo. No Alto da Bronze, a voz do Vitor Ramil e a prostituta que trabalhava ali. Os soldados fazendo a ronda são quase todos Lupicinios em um tempo que não é hoje. A sensação de um tempo que transcende a nossa existência individual é constante nas zonas históricas.
Cinquenta tiros é muito tempo, mas serão esquecidos. A insegurança parece constante, mas pode ser temporária. A revitalização deve trazer um ar falso Miami, mas logo terá cara própria. Um shopping não.
Deixamos o bar e, dentro dele, um pouco do nosso medo. A Andradas anoitecia, era verão e, lentamente, um dia após o outro, as pessoas voltavam a tomar os seus espaços. Times they are a-changin'.
* Ismael Caneppele escreverá mensalmente no novo Caderno DOC.
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