Será possível a existência de um termo razoável, ponto de consenso entre diferentes visões do mundo, etnias, pais e filhos, classes, ideologias, partidos e dialéticos do teclado ou da mesa de bar? Há alguma chance de um e outro porém a circular alteridades e encontrar algo diferente e igual para ambos, talvez a unidade ou uma diversidade mutuamente satisfatória? O diálogo: existiria, fora do drama, da literatura, da retórica e do cinema, uma forma de troca de ideias por meio de sentenças, cujo resultado levaria ambos os interlocutores a um novo patamar, superando o conflito inicial?
A política, dizia o helenista Moses Finley, surgiu para que se praticasse o debate institucional em lugar do enfrentamento pelas armas (guerra civil, stásis). Era preciso debater e esclarecer o que era o bem comum, e pactuar normas consensuais. Os gregos, cindidos por muitas diferenças, uniam-se quando o assunto era a sobrevivência da pólis. E nós, quando vamos superar os golpes e as escaramuças rasteiras e dialogar sobre o futuro de cidade, Estado e nação? A solução pelo diálogo é talvez a maior utopia da humanidade, e o desafio mais angustiante entre nosso cotidiano e o destino da civilização.
A filosofia clássica enfrentou esse desafio e produziu soluções arriscadas, traiçoeiras e ambíguas. Nos diálogos de Platão, simula-se uma argumentação dedutiva, quando na verdade é dramatizada uma doutrina, colocada na voz de Sócrates, que sai vencedor em todas as disputas, passando a régua em numerosas contradições que o autor suprime para chegar ao fim máximo, a consagração de um herói filosófico e de suas teses. É o diálogo em que alguém já possui a verdade. É raro encontrar leitor arguto que não tenha resposta diferente do que os "como não, Sócrates?" que inundam os diálogos do fundador da Academia. Já o fundador do Liceu, querendo método diverso e mais eficiente, pôs todas as suas fichas no pensamento lógico e na didática descritiva e analítica; as deduções de Aristóteles não são ilustradas com a fala de personagens históricos, mas apresentadas como o desenvolvimento de propriedades contidas nos fenômenos, logo, certificadas pelo conhecimento que os próprios fenômenos evidenciam, sejam eles pedras, plantas, heróis ou narrativas. Diálogo, para o estagirita, era um fenômeno a ser compreendido, um dos mais importantes.
Estudioso da tragédia grega, Aristóteles compreendeu que os diálogos devem servir para que se produza o que raramente ocorre nas obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípides (igualmente em Shakespeare, Racine e seus êmulos): escolhas que levam à felicidade, prudentes e atentas aos resultados. A tragédia exibe de que modo figuras arrogantes tornam-se surdas ao diálogo e recusam o que ponderam o Coro e demais personagens em cena, avançando para destinos catastróficos. Ao final, os heróis perceberão a gravidade dos erros - a anagnórisis ou reconhecimento - e se produzirá o pleno efeito trágico, diante da plateia estupefata. A melhor expectativa era que a cidade, então, aprendesse e sanasse muitos males, realizando a catarse ou purificação, um êxtase consciente conduzido pelo diálogo dramático. Na forma trágica perfeita, todavia, Antígona diria verdades sinceras a Creonte, e este diria sentenças legítimas à sobrinha, e ao final ambos sucumbiriam; o público perceberia que há teses inconciliáveis, que o diálogo revela, mas que não há solução. Na melhor das hipóteses, o aniquilamento trágico levaria a um colapso da história, grau zero do mundo a partir do qual só podemos criar algo novo - o fogo de Shiva, arraso cáustico que inaugura renovada criação. Após o terror trágico, apresentava-se um bando de debochados travestidos de sátiros, rápidos em escarnecer de tudo e de todos, especialmente dos políticos, com humor escrachado - o drama satírico, quarta peça após a trilogia trágica. Na comédia, havia igual poder cáustico do diálogo, incluindo aquela em que Aristófanes tanto atacou Sócrates que terminou colaborando em sua condenação (As Nuvens, 423 a.C.).
Naquele mesmo contexto, o século V a.C. em Atenas, os sofistas criavam as ciências da linguagem, por meio da técnica (arte e ciência) retórica, cujo principal objetivo era assegurar o triunfo por força, persuasão ou encanto, ou seja, usando o diálogo para um golpe. O apaixonamento foi examinado para se compreender a persuasão, no debate em que Górgias e Eurípides argumentaram pela inocência ou responsabilidade de Helena: vítima de força mais poderosa (divina), ou autora? A ambos estava claro que o discurso é uma ameaça, e diante de um bom orador, tanto quanto diante de qualquer feitiçaria de mídia, cabe a maior das cautelas. A retórica, de amiga da didática, pode facilmente tornar-se veneno.
Arrogância (hybris), prepotência, narcisismo, ambição de sucesso, fraude, conflito inconciliável: quando a melhor das ferramentas culturais pode realizar seu destino e produzir concórdia? "Mas as pessoas já começam o papo decididas a não mudar de opinião, então para que serve diálogo?", suspira Heloísa, minha caçula (16), ao ver como cresce o litígio e a intolerância nas redes sociais. Precisamos compreender o diálogo, e dialogar.
*Francisco Marshall escreve mensalmente no PrOA.