Deadpool, protagonista do filme que entrou em cartaz esta semana nos cinemas da Capital, veste uma roupa sintética apertada vermelha e usa uma máscara, além de ter saído diretamente das páginas dos quadrinhos da Marvel. Também é deformado como "um abacate que transou com um abacate mais velho e nojento" (frase tirada textualmente do roteiro), retalha seus inimigos com duas espadas com lâminas do tamanho de tacos de sinuca e fala quase tantos palavrões quanto Al Pacino em Scarface. Ele também leva um tiro em um lugar cuja menção é imprópria para este espaço (embora não para a tela do cinema). Definitivamente, não é o filme de herói em que você levaria suas crianças fãs dos Vingadores, é sim uma produção que faz piada do fato de um sujeito adulto sair por aí vestindo colante e de estúdios de cinema precisarem usar viagens no tempo para consertar franquias tornadas cada vez mais confusas.
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Deadpool pode ser o filme que marca uma inflexão no gênero que parece atingir até mesmo outras produções mais "família" do estilo - depois de estabelecerem o blockbuster de capa como um gênero próprio no mercado de cinema, os estúdios agora parecem buscar inspiração em elementos tardios (e mais sombrios) dos quadrinhos originais e não o colorido associado ao gênero ao longo do século 20. Desde a ascensão das franquias X-Men e Homem-Aranha, no final do século passado e no início deste, os filmes baseados em heróis de quadrinhos se tornaram uma rentável fatia no conjunto dos blockbusters cinematográficos - quatro deles estão na lista das 20 maiores bilheterias de todos os tempos apuradas pelo portal Box Office Mojo.
Adaptações de quadrinhos não são novidade, claro. Desde pelo menos os anos 1940, personagens como Batman, Super-Homem e Capitão Marvel (que décadas mais tarde teria o nome de sua revista mudado para Shazam, devido a um conflito judicial com a editora concorrente Marvel) rendem grana em versões filmadas. Christopher Reeve foi a encarnação do Super-Homem para toda uma geração a partir do filme de 1978. O que há de novo de fato na atual super-safra é a escala, o jogo mais pesado em busca do retorno na bilheteria e a tecnologia de efeitos digitais que permite às criações mais malucas de uma mídia por si só surtada ganharem movimento.
A Marvel, editora de heróis como X-Men, Homem-Aranha e da equipe dos Vingadores, foi a pioneira da nova onda, primeiramente em parceria com estúdios já consagrados e depois criando uma franquia gerenciada pela própria marca. A DC, que publica Super-Homem, Batman, Mulher-Maravilha, entre outros, fez nesse período a trilogia dirigida por Christopher Nolan com Christian Bale como Batman, cuja aclamação crítica ultrapassou qualquer coisa feita pela rival. Mas ambas seguiram mais ou menos o padrão estabelecido ao longo do tempo nos quadrinhos: o herói como um ser virtuoso, mesmo que torturado por tragédias pessoais, lutando contra indivíduos corruptos que encarnam a vilania motivados por ambição desmedida, crueldade mais ou menos anárquica e delírios de grandeza. Uma leitura bastante estilizada dos arquétipos da jornada heroica, e que agora parece sofrer inesperadas torções com os filmes do gênero previstos para este ano.
De Deadpool já se falou, mas há também no horizonte Esquadrão Suicida, produção baseada nas histórias da DC que parte de uma premissa tão simples quanto cínica: em um mundo com supervilões presos e cumprindo pena por seus crimes, um projeto do governo se vale de alguns deles para missões clandestinas em troca de redução de pena. Embora menos anárquico, o filme, com data marcada para agosto, promete uma torção pouco vista no universo claramente maniqueísta dos super-heróis: os protagonistas do filme são os caras maus colocados em posição de fazer um bem colateral enfrentando ameaças ainda piores - como uma nova versão cinematográfica do Coringa, por exemplo. É uma versão mais radical do que a concorrente Marvel fez com Guardiões da Galáxia (2014), substituindo o componente de ficção científica deste pela psicose inerente à personalidade vilanesca.
Estão marcados ainda para este ano outros dois filmes que subvertem a seu modo a cartilha vigente: Batman vs Superman: a Origem da Justiça, que deve estrear em março, e Capitão América: Guerra Civil, agendado para abril. Os dois se valem do mesmo artifício: jogar seus principais personagens (e seus maiores heróis) uns contra os outros, ao mesmo tempo em que citam material dos gibis originais populares entre os fãs. O ambiente também contribui para essa nova leva de produções. Um filme só com supervilões talvez não fosse uma ideia tão boa em tempos anteriores ao sucesso de Breaking Bad. O fato de cada filme de herói usar um vilão intercambiável sem muita identidade definida explica por que os estúdios agora precisam fazer seus heróis saírem na porrada.
Ao mesmo tempo, ambas as editoras põem em jogo seu próprio futuro cinematográfico. Pioneira em estabelecer um universo em que os personagens de filmes diferentes se interligam até uma apoteose com multidões de super-sujeitos em cena, a Marvel lida com um paradoxo interessante: seu Avengers: Age of Ultron não superou a bilheteria do primeiro filme do grupo nem teve a mesma acolhida calorosa por parte de seu público, entre outros motivos porque apresentava uma história engessada por vários compromissos do estúdio com a cronologia estabelecida e com a longa lista dos filmes que ainda estão por vir em seu cronograma. Já uma produção menos grandiosa (em mais de um sentido, e o trocadilho é intencional, obrigado), como Homem-Formiga, foi recebida como uma bem-vinda surpresa, provocando a pergunta: a união de grandes levas de personagens compromete a fluidez narrativa de um filme com as limitações de duração de uma produção de grande estúdio?
Já a DC precisa repetir com o conflito de Batman contra Super-Homem o sucesso de Homem de Aço (2013), sob pena de precisar cancelar seus planos para ter nas telas a Liga da Justiça num futuro próximo, de acordo com rumores que circulam na Warner Bros, a companhia proprietária da editora. Depois de mostrar o Super-Homem enfrentando outros alienígenas com poderes iguais aos seus, agora é a vez de ele e do Batman saírem no braço. Pelo que mostram os trailers da produção, o conflito é motivado por visões distorcidas que um tem do outro - Batman considera tanto poder na mão de um único indivíduo semelhante a um deus um perigo para toda a humanidade. Super-Homem considera a violência de Batman contra os criminosos em Gotham atos bárbaros de vigilantismo. A ironia está em que ambos estão certos, dado que o Batman, herdeiro da seriedade que deu certo nos filmes de Nolan, é de fato uma máquina de moer criminosos. E o Super-Homem terminou seu primeiro filme matando um adversário com as próprias mãos depois de uma batalha que resultou em milhares de mortes.
Mesmo repaginados, ambos são lados da mesma moeda de um tipo de mídia que cresceu explorando a mentalidade bastante americana do "poder com responsabilidade", tal responsabilidade consistindo em ações unilaterais de imposição da vontade pela força, mesmo que tomando uma curva por fora do sistema legal. Banhado na atmosfera altamente individualista da sociedade norte-americana, o super-herói foi por anos a representação simbólica da autoimagem dessa sociedade. Como superpotência intervencionista defendendo o "modo de vida americano", os EUA por vezes se comportam como o próprio Super-Homem em sua abordagem mais recente, deixando uma trilha de estragos no rastro de suas boas intenções. O personagem que encarna o país até no nome, o Capitão América, também é a representação de um discurso patriótico geral que foi sendo atualizado desde sua criação. Como Jô Soares (sim, ele mesmo) escreve em um artigo publicado no clássico Shazam!, uma coletânea de ensaios organizada por Álvaro de Moya em 1977, é interessante que o personagem seja caracterizado por um escudo. Surgido durante a II Guerra, o herói ataca com um artefato de defesa, o que traz à memória vários debates na história americana (alguns bastante recentes) sobre "ataques preventivos" justificados como reação a uma ameaça iminente mas não presente (as armas de destruição em massa no Iraque, por exemplo).
Em tempos de crise econômica e de um atoleiro bélico no Oriente Médio, de escândalos de hipervigilância ilegal promovida pelo governo dos Estados Unidos, tal autoimagem se reflete em situações e temas menos otimistas. A própria história em quadrinhos Guerra Civil, de onde foi tirado o argumento básico do próximo filme, é um resultado direto da polarização entre liberdade x segurança pós-Era Bush. Uma lei obrigava a identificação e registro de todos os heróis: o Homem de Ferro, um magnata da tecnologia, era a favor, o Capitão era contra. No filme, essa questão talvez não ocupe o centro da narrativa porque o tema das identidades secretas não foi relevante nos filmes produzidos pela Marvel até agora (a não ser nos do Homem-Aranha, que não foram feitos pelo estúdio, e sim pela Sony).
No quesito super-heróis, o cinema está ajustando um descompasso com os quadrinhos, que passaram a olhar criticamente para os personagens a partir dos anos 1970, em histórias como um Batman mais urbano e realista ou a dupla Arqueiro Verde e Lanterna Verde viajando pela América tomada por problemas como violência, pobreza generalizada e drogas, ambos trabalhos de Dennis ONeil e Neal Adams. Essa tendência atinge um pico nos anos 1980, com Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, e com Watchmen, de Alan Moore, um inglês horrorizado com Margaret Thatcher no comando de seu país. O primeiro já foi sugado pela franquia de Nolan, ajudando a estabelecer um padrão para as aventuras do gênero que não destoa do caráter maniqueísta geral do estilo, mesmo que seu protagonista se apresente mais complexo. O segundo, um verdadeiro ensaio sobre a tentação fascista que cerca os superpoderosos, foi adaptado para o cinema em 2009 pelo mesmo Zack Snyder que agora dirige Superman vs Batman. Mais preocupado em ser fiel quadro a quadro à história, ele perdeu o ponto principal de que aquele deveria ser o filme para pôr o dedo na ferida do gênero: o perigo inerente a esperar uma solução vinda de um salvador dotado de habilidades únicas.