Eu me lembro de como eu e outras pessoas de Porto Alegre estávamos nos sentindo dois anos atrás, talvez menos. Havia uma sensação coletiva de potência e otimismo, produzida por pequenos atos: festas espontâneas na rua, piqueniques no parque, distribuição de mudas de manjericão e cebolinha. Muita gente achava que algo estava acontecendo, ainda que esse algo fosse muito vago e certamente incompreendido pelo poder público, mas tudo bem, nós éramos milhares e, se não conseguíssemos mudar o mundo, ao menos estávamos nos empenhando em construir um bonito universo paralelo.
Eu me sentia confiante o suficiente para andar de bicicleta na rua, mesmo sabendo que o trânsito era agressivo e que de uma hora para a outra eu podia virar uma mártir sem ter nenhuma vocação ou intenção de ser mártir. Acontece que a força e o entusiasmo coletivo reverberavam dentro de mim e me davam a dose necessária de coragem para pegar minha bicicletinha azul e sair em busca de uma baguete de fermentação natural.
Então, em algum momento, houve um choque de realidade. Adeus, bicicleta. Como se a bolha não conseguisse mais resistir às pressões externas e arrebentasse. O clima de repente ficou pesado em todos os níveis: federal, estadual, municipal. Fomos vencidos. Esvaziados. Pisoteados. Há um escândalo atrás do outro em Brasília, sucessivas provas de que o Estado está falido, tapumes bloqueando nossa visão do Guaíba, violência absurda em todos os lugares da cidade, mas o que realmente parece ligar tudo isso nessa gigantesca nuvem cinzenta que paira sobre o maior país da América do Sul é a sensação de que ninguém está nos cuidando. O desamparo é total. Os governantes estão totalmente desconectados de nós.
Talvez o ponto fora da curva tenha sido, por um tempo, acreditar. Talvez esse seja simplesmente o Brasil voltando ao seu estado regular de desesperança.
Em 2015, conheci um americano apaixonado pelo Brasil. Ele tinha viajado por quase toda a América de Sul de moto no ano anterior. Ele é um cara legal que usa uma pulseira de bolinhas (podem ser algum tipo de semente), que me ofereceu um sofá surrado para dormir em uma casa no meio do mato no norte da Califórnia e que me falou sobre o quanto a natureza era incrível porque supostamente os galhos das redwoods nunca se tocam, cada árvore respeitando o espaço da outra. Ele está no Brasil agora. No Pará. Convivendo com famílias simples, se sentindo em casa como nunca se sentiu em seu próprio país de Primeiro Mundo. É bonito ver o entusiasmo dele.
Mas não consigo parar de pensar no quanto a sua condição de estrangeiro ajuda nisso. Parece contraditório, mas às vezes há algo de reconfortante no estranhamento. Entender quase tudo é que gera o problema. O olhar do nativo é duro e ciente de sua impotência.
O que podemos fazer? Posso aprender com ele? Devo ignorar as notícias do jornal e tentar me conectar à natureza? Moro nessa cidade e parece que assim vai ser por um tempo. Para tentar tirar o melhor dessa experiência, talvez precisemos reunir forças suficientes para resistir de novo. Pode ser com um violão no meio da rua, ou segurando velas na Redenção à noite, ou como fizeram as meninas do colégio Anchieta essa semana pelo seu direito de usar a roupa que quiserem usar. Se tudo isso for uma ilusão, que seja.
*Carol Bensimon escreve mensalmente no caderno PrOA.
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