Basta ingressar no trapiche para os olhos do funcionário público aposentado Paulo Romualdo Pacheco, 86 anos, do Bairro Belém Novo, em Porto Alegre, brilharem e, em seguida, levemente marejarem. Pachecão, como é conhecido, garante emocionar-se porque ali se sente livre. Estar próximo do Guaíba é sempre o momento mais esperado por ele. E o gesto se repete há 80 anos.
- Chegar no trapiche é como um calmante para mim - revela.
O relacionamento duradouro entre Pachecão e o Guaíba iniciou na década de 1930, a bordo de uma canoa. Ao lado do pai, Heitor Pacheco, percorreu cada ponto da região no veleiro Minuano. Ainda guri, decidiu que teria o próprio barco. Pachecão só parou de navegar por duas décadas, quando mudou-se a trabalho para o interior do Estado. A saudade das águas o fez voltar à Capital.
Ao longo dos anos, viu a transformação de um Guaíba transparente, onde se via os peixes nadando, ao de cor escura da poluição e do desmatamento da mata ciliar dos rios e arroios que o formam.
- Não digo que sou um expert, mas sei todos os acidentes geográficos que existem por aqui - garante.
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Amor e liberdade
E é nas margens do Guaíba que está atracado um dos maiores amores de Pachecão, aquele sonhado desde a infância. Há 15 anos, ele vendeu quase todos os bens da família e fez empréstimo para construir Sabiá, o veleiro de madeira ipê idealizado pelo aposentado para navegar pelo Guaíba e pela Lagoa dos Patos. Com a ajuda financeira do filho, o percussionista Kako Pacheco, 52 anos, o Velho Lobo realizou o desejo.
Inspirado nos barcos ceboleiros que atracavam no Belém Novo, entre 1930 e 1940, Pachecão desenhou uma embarcação com fundo redondo e esqueleto de madeira possante, capaz de enfrentar o vento Leste - o mesmo Nordestão do litoral -, que forma ondas com mais de 2m de altura.
"Estou vagau!"
A paixão por velejar motiva Kako e os netos Gabriela, oito anos, e Eduardo, 12, filhos de Kako. Os três costumam acompanhar Pachecão nas incursões por ilhotas e margens até Rio Grande. Enquanto a mulher, a pedagoga Célia, 81, fica em casa, ele veleja com Kako. Os dois já fizeram passeios com asilos e crianças de projetos sociais.
O lugar do aposentado agora é na proa. Ali, olhando os bigodes - como identifica a água que jorra pelos lados do barco:
- Trabalhei muito para desfrutar deste momento. Estou vagau! Quando morrer, já avisei: a minha cinza será trazida e colocada em Belém. No Guaíba mesmo.
História real de velejador
Mesmo não sendo pescador, o aposentado coleciona histórias envolvendo as águas. Ao lado de Kako, perdeu a conta de quantas pessoas já resgatou e de quantos barcos encalhados ajudou a puxar em meio a temporais. Mas há um fato, narrado aos risos por Pachecão e com apreensão por Kako, que uniu ainda mais pai e filho.
Em maio de 2007, na única vez em que decidiu usar colete salva-vidas, Pachecão foi traído por uma onda e caiu do barco no Guaíba, próximo a Itapuã, quando os dois retornavam de Mostardas, à noite.
- Caí de costas, e consegui escapar da hélice. Não gritei. Dei umas braçadas e pensei: tô no lucro, escapei de virar guisado! Só vi a lâmpada do Sabiá sumindo na escuridão - relata, às gargalhadas, o aposentado.
Conheça, em vídeo, a história de Pachecão
Kako só percebeu o sumiço do pai cerca de dez minutos depois, a mais de 1km de distância.
- Me desesperei, e pensei que o tinha perdido. Andava dois minutos, e desligava os motores. Na terceira vez que fiz isso, ouvi os gritos dele à distância. Foi um milagre localizá-lo no escuro - recorda o filho.
- Preservei a goela para gritar quando ouvisse o barco. Mas tinha feito o cálculo: na velocidade das ondas, levaria umas dez horas boiando até a ilha dos Tigres - comenta Pachecão.
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Pachecão com a foto do pai no pequeno veleiro da família
Faceiro no trapiche. Ao fundo, o filho faz os últimos ajustes antes de navegarem.