O ex-governador Tarso Genro era prefeito de Porto Alegre na época em que as primeiras edições do Fórum Social Mundial foram realizadas. A seguir, o petista faz um balanço desses 15 anos e dos rumos da esquerda.
Qual o balanço das causas do Fórum Social Mundial 15 anos depois da primeira edição em Porto Alegre
No início o fórum se levantava contra o neoliberalismo, a globalização, a miséria. Que balanço o senhor faz desses 15 anos?
O surgimento do Fórum Social Mundial se dá num período em que se somam três contingências históricas internacionais muito fortes. A primeira é a força destrutiva que teve nas utopias o fim da União Soviética. O segundo aspecto é o trânsito que naquele momento estava visivelmente fazendo a social-democracia para uma posição mais centrista, mais pró-mercado. Em terceiro lugar, os efeitos na estrutura de classes da sociedade de todas as transformações tecnológicas que ocorreram no final da década de 1980, início dos anos 1990. Esse último fator tem grande importância, ele constata a fragmentação da estrutura de classe tradicional. Em vez de luta de classes em cima das questões de classe tradicionais, em cima das questões econômicas e de poder mais imediatas, emerge no mundo inteiro uma luta de fragmentos da sociedade, lutas por direitos e relacionadas a costumes, como a questão da sexualidade, da mulher, as questões ambientais se tornam mais intensas. Isso não quer dizer que a luta de classes tenha terminado, mas adquire outras formas. Já não é a forma tradicional de classe contra classe, e sim uma luta difusa por novos direitos. Dentro de uma sociedade mundial que tinha perdido a utopia após o fim da União Soviética, de uma parte, e de outra parte uma espécie de domesticação da social-democracia, indo para uma posição mais pró-mercado. Então isso determina uma amplo movimento, que envolve desde as forças mais tradicinais de esquerda até esses novos movimentos sociais. E essa enorme fragmentação concentra a solvidade em cima dessa visão de que um outro mundo é possível, ou seja, transforma aquela situação desfavorável e uma situação de crise ideológica, crise de perspectivas, em uma nova utopia, um outro mundo é possível. Essas forças se uniram, e o fórum vem se desenvolvendo. Ele nasce com uma aspiração majoritária de se tornar uma Nova Internacional do novo mundo possível, ao mesmo tempo socialista, libertária, ecológica. O problema que ocorre na minha opinião é que na verdade é impossível ainda construir, alinhavar um programa unitário com essa enorme disparidade de interesses. Como consequência, o fórum vai perdendo força. Teve dois episódios bem marcantes, que eu participei depois desse processo todo. Em Gênova, onde eu até falei, foi o último momento em que a esquerda tradicional praticamente disputou a orientação do fórum, e perdeu. Teve inclusive um incidente grave, um jovem foi morto por policiais. Ele era de um movimento anarquista que teve um choque contra a polícia. Aquilo ali na minha opinião aguçou essa crise de perspectiva. E outro momento foi no fórum em Belém. Eu estive lá, a metade das organizações eram políticas e a outra metade era indefinida, desde o ecologismo mais radical até associações esportivas, não ligadas à política. Neste fórum a gente já via que havia um processo de fragmentação e de dissolução dessa centralidade do outro mundo é possível, que veio se desdobrando de lá para cá.
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Qual é a importância do Fórum hoje?
É a continuidade das discussões sobre o futuro, mas ele perdeu aquele vigor político de ser um Fórum Social Mundial contra o sistema, porque não conseguiu moldar um programa novo, suficientemente amplo, democrático e convincente para abarcar esses novos movimentos, forças sociais e culturais que surgiram nesse período. Até escrevi um artigo na Folha, A Internacional dos Fragmentos, no momento em que o fórum estava no auge. Parece que até tive uma premonição, quando escrevi esse artigo fui muito criticado por determinados setores de esquerda mais tradicional, que diziam que eu não reconhecia que estava surgindo ali uma Nova Internacional Socialista... e não estava. Mas é importante sua defesa de direitos, aspirações, para criar um caldo de cultura novo, que possa renovar a esquerda e o campo democrático em escala mundial.
Houve falhas na condução do Fórum?
Acho que essa mudança de perfil é orientada por mudanças que ocorrem na estrutura da sociedade capitalista, onde as grandes políticas contra o sistema, para constituir novas utopias, não partem mais da classe trabalhadora organizadora, como era na sociedade industrial clássica. Então isso aí determina que não tenha um sujeito organizador desse processo, nem uma amálgama de classe capaz de permitir a construção de um programa. É um período de descenso inclusive da ideia de solidariedade, da luta de classes tradicional, como se apresentava na sociedade industrial, que ainda não encontrou seus caminhos. Daquele período para cá e a situação mundial dos pobres e excluídos não mudou para melhor. Portanto, esse outro mundo é possível ainda é uma dívida que o movimento e as forças políticas têm, para redespertar o sentimento utópico que gerou o fórum.
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A sensação da sociedade, que teve uma fragmentação, que o Fórum perdeu força... por não aglutinar tanto. Como o senhor vê o rumo que tomou?
Ele reflete exatamente esse tipo de fragmentação que existe na sociedade. Mas isso daí não é algo que depende da orientação política do fórum, reflete uma fragmentação na estrutura de classes, de demandas e desejos da sociedade. E isso automaticamente se reflete nos conteúdos dos debates do fórum e nas forças que participam. Mas isso tem que ser abordado na minha opinião como um período histórico determinado. Não quer dizer que as lutas do fórum social mundial sejam inválidas, que o fórum não têm futuro. Isso quer dizer que as forças sociais que dão base a esse movimento não encontraram ainda um programa suficientemente convincente e unitário para reorganizar inclusive as relações de solidariedade internacional que sempre marcaram as posições da esquerda, e inclusive da própria social-democracia.
O afastamento dos partidos do Fórum foi uma decisão ou uma imposição, como se fossem empurrados para fora, pelos movimentos?
Na verdade as duas coisas. De uma parte, tinha certa visão de um setor do Fórum de que os partidos tradicionais de esquerda não tinham mais futuro. De outra parte, se sentiam alijados dos processos, que não tinham uma participação tão importante quanto a potência eleitoral deles.
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A América Latina teve um período de predomínio da esquerda, e agora se volta à direita. Como o senhor vê esse movimento?
Acho que vai ocorrer aqui na América Latina um ciclo mais à direita, isso é nítido. A gente não sabe ainda qual a dimensão dele, e não sabe qual a capacidade de reação do campo mais à esquerda, e do campo democrático radical.
O desencanto pesa?
Não é o problema propriamente do desencanto, porque esses momentos são de disputa pela hegemonia. Acho que hoje as ideias, o projeto e o modo de vida neoliberal estão vencendo de novo em escala mundial. E há de se considerar também o papel que a própria mídia exerce no convencimento de que esse é o modo de vida que pode nos levar à felicidade, à salvação. Mas essa hegemonia também pode ser periódica. Pode ceder em determinados momentos com movimentos sociais que venham com força, como vieram nos movimentos de junho.
No caso brasileiro, as denúncias de corrupção, também maculam a proposta que foi oferecida pela esquerda.
Essas denúncias compõem esse quadro de hegemonia que a direita conseguiu constituir, porque por dentro do aparato de Estado e da mídia está havendo um convencimento que estas questões são questões de esquerda. Se for verificar, até em termos percentuais, os partidos de esquerda são os que têm menos pessoas de esquerda são menos atingidas do que os partidos de direita. A mim ninguém convence que essas visões, que vem da oposição, são verdadeiras. A corrupção vem inclusive sistemicamente por dentro do desenvolvimento capitalista do país, e já expressão muito forte em outros governos que a esquerda não participou
E qual seria o maior legado do fórum nesses 15 anos?
O principal legado é o fato de ter aberto novas fontes de comunicação, entre os movimentos sociais, academia, a intelectualidade, novos movimentos, em escala mundial, coisa que antes era feita exclusivamente pelos partidos. Esse é o grande legado, é daí que pode surgir alguma coisa nova.