Intelectuais servem, não raro, apenas como instrumentos de poder e perdem toda autoridade científica ou moral. Jean Paul Sartre tem má fama em nossos dias, titubeou diante das atrocidades stalinistas, guardou silêncio sobre a repressão soviética nos países dominados pelo Partido. Mas, em troca, denunciou com Bertrand Russell os crimes de guerra no Vietnã e as ditaduras do século 20. Figura bem menos apreciável apresenta Maurice Merleau-Ponty. Sem ter a ousadia sartreana, Ponty flertou com o stalinismo de modo vergonhoso, ao mesmo tempo em que fez uma crítica enviesada do pensamento liberal.
Ao analisar a violência de Stálin, o filósofo discute um tema ainda hoje estratégico: a escolha, para os militantes, entre moral e disciplina partidária. O membro da agremiação não se preocupa com sua moralidade pessoal, mas com a revolucionária. Importa não criticar o partido, o que fragiliza a organização e leva à perda de conquistas históricas. Na crise, a militância também estremece, "a liberdade de cada um ameaça mortalmente a dos outros, a violência ressurge".
O liberalismo não entende, diz nosso autor, a violência comunista. Ele nos apresenta uma questão: a violência do comunismo oficial de 1947 seria a mesma, revolucionária, identificada por Lênin em 1917? Ponty responde com Maquiavel: "A astúcia, a mentira, o sangue derramado, a ditadura se justificam se tornam possível o poder do proletariado e nesta medida apenas. Em sua forma, a política marxista é ditatorial e totalitária"(Humanismo e Terror). Se engana quem imagina existir, em tal assertiva, uma condenação da ditadura exercida por Stálin. Pelo contrário: trata-se da velha história segundo a qual os fins justificam os meios.
Mas o próprio Lênin tinha prontas doutrina e prática mentirosas e violentas, que se realizaram na ditadura de seu partido. Para ele, o marxismo é uma ciência que apresenta leis necessárias. Não seria preciso, para instaurar a ditadura do proletariado, nenhuma legitimidade popular ou institucional. A política bolchevista estaria de acordo com os princípios (leis
) marxistas. Se tal era o seu fito doutrinário, na prática Lênin seguiu à risca a teoria.
Em julho de 1918, ele manda fuzilar e deportar centenas de prostitutas que desviam os marinheiros para os bares e também visa a expulsar antigos oficiais para prevenir uma sublevação em Nijni-Novgorod. Em agosto, exige a abertura de um campo de concentração para aplicar "o terror de massa" sobre padres, guardas brancos, kulakes. No mesmo ano, se queixa de Maria Spiridonova, líder dos socialistas revolucionários de esquerda, o que resulta na internação psiquiátrica daquela pessoa, uma das primeiras na longa lista de internados pelo regime em hospitais, até a sua falência. Lenine assimila o civismo e o policialesco : "o bom comunista é também o bom policial (techkista)". E chegam a supressão da liberdade de imprensa, de associação, de reunião. "A ditadura é um poder que se apoia diretamente na violência e não é ligada por nenhuma lei. A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder que não é ligado por nenhuma lei". As frases são dele mesmo, Lênin. A ditadura tem o condão de compensar o atraso das forças produtivas russas. Assim o golpe de Estado bolchevique se justifica mas não se legitima porque esperar uma decisão emanada do Congresso dos Sovietes "é ilusão constitucional". Nada de vazias palavras inscritas nas falas das pessoas ou nas leis. A solução correta e científica, segundo Lênin, encontra-se na força: "o povo tem o direito e o dever, nos momentos críticos da revolução, de guiar seus representantes, até os melhores, em lugar de os esperar".
Em O Estado e a Revolução, a antiga máquina opressiva do Estado burguês deveria ser desmantelada pela ditadura proletária. Mas com a instalação ditatorial leninista, o poder estatal não tende a ser dissolvido, pelo contrário. A culpa? O proletariado ainda está preso nas malhas do atraso feudal, das camadas pequeno-burguesas, cuja figura maior é o kulak, vampiro que esfaima as cidades e que é preciso eliminar. Em 1918, ele responde às críticas dos mencheviques e comunistas de esquerda sobre o seu autoritarismo ditatorial, críticas que recordam César e Napoleão II. No texto As Tarefas Imediatas do Poder dos Sovietes ele mostra que não há incompatibilidade entre ditadura pessoal, mesmo em política, e a natureza do poder soviético. A ditadura pessoal, com frequência, foi na história "a expressão, o veículo, o agente da ditadura das classes revolucionárias". Assim, quando um militante afirma ser a experiência soviética uma forma democrática, indiquemos a ele os textos do próprio Lênin e de seus companheiros. E, por favor, não nos falem em golpe de Estado e ditadura, pois naquela arte eles são mestres.
*Roberto Romano escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
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