Um dos tantos ditos gauchescos com a força expressiva das comparações concretas, lembrei desse aí do título a propósito de cena familiar com a minha filhota Dora, que vai completar seis anos mês que vem. Dá pra entender a frase mesmo sem jamais ter cheirado bosta de quadrúpede no campo - ou não?
O contexto: tínhamos viajado de carro para a praia, no dia anterior, e, em uma parte do tempo, no transcurso, ela tinha se comportado de modo bastante desagradável. Interrompeu conversas muitas vezes, chamou a atenção sobre si de modo ostensivo, reclamou sem razão, se queixou de falta do que fazer quando havia boas opções, por fim se invocou mortalmente com o travesseiro que providenciamos para ela tentar dormir - travesseiro que nos obrigou a parar, sob certa chuva, e abrir o porta-malas para apanhá-lo. Então, depois de tudo, chorou aos gritos, para sublinhar sua chatice. E em seguida caiu no sono, claro.
Chegamos uma hora depois, e ela ficou ótima, doce como sabe ser, gentil como eu sempre peço que sejam os filhos e como nós tentamos ser sempre com eles. (A palavra que usamos é essa mesmo: gentil, gentileza, para os de casa, na escola, com os familiares e amigos, em toda parte.) E volta e meia eu tentava encontrar um jeito de fazer ela lembrar que tinha sido um saco aquela longa parte da viagem, por descortesia dela; só que não achei oportunidade, porque realmente tudo ficou bem e eu desisti da liçãozinha de moral que queria dar.
Passou.
Dia seguinte, café da manhã, ela ótima, todo mundo bem. Em certo momento, só ela e eu à mesa - o Benja ainda estava saindo da caverna do sono, a Julia estava preparando um pão para a Dodó -, lembrei do dia anterior. Mas não era hora de cobrar aquela chatice.
Parêntese: sei lá se estou certo, mas me parece que a gente não pode passar a mão sobre certas asperezas da vida, na educação dos filhos. Eu cobro deles coerência, espero que em medida adequada para a idade deles, mas cobro. Com isso me submeto a ser cobrado também, naturalmente, e já houve momento em que eu precisei reconhecer que estava em falta. E aquela cena do carro, na viagem do dia anterior, retornava à lembrança.
Ainda mais que ela tinha estragado, com seu comportamento, um momento importante entre a Julia e eu, uma conversa importante sobre o trabalho da Julia, enfim, uma conversa que ia se configurando como de boa força entre pai e mãe, para fins práticos, ligados à vida real.
Essa liga entre os pais poderá ter despertado o ciúme da pequena? Pode ser. Mas nem a consciência disso atenua o que ela fez, eu penso.
Então estamos na mesa do café, naquele clima adorável. Chega a Julia com uma torradinha magnífica para a Dodó, que recebe o alimento, que era também um mimo, com um sorriso amplo, irrestrito. E eu comento: "Que mãe gentil que tu tem, né?".
A palavra desperta a minha carranca interior, de pai ofendido: "Que legal ser tratado assim, com gentileza, né, Dodó?".
Ela sorri.
E eu achei que tinha encontrado o brete para dar o xeque-mate na pequena: "Tu conhece outras pessoas gentis assim, Dodó?".
A pergunta não era boa. Reformulei:
"De manhã, quando tu te olha no espelho, tu vê uma pessoa gentil ou não gentil, filha?"
E repeti ainda a pergunta, certo do triunfo da pedagogia: "O que é que tu vê quando tu te olha no espelho, uma pessoa gentil ou não gentil?".
Achei que ela ia correr para a autocrítica. Ledo e ivo engano:
"Uma pessoa feliz, pai."
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"Sei lá se estou certo, mas me parece que a gente não pode passar a mão sobre certas asperezas da vida, na educação dos filhos"
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