Autor do livro O Brasil Entre o Presente e o Futuro (Mauad, 2015), o sociólogo José Maurício Domingues analisa o contexto político atual e sua relação com os movimentos sociais.
Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e pesquisador associado do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, Domingues diz que a esquerda precisa ser "menos arrogante" para ser capaz de criar uma nova agenda e se reconectar com os anseios da sociedade.
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Depois de uma inclinação à esquerda, o Brasil e a América Latina assistem a um fortalecimento da direita. Como o senhor lê esse movimento?
Nos anos 1980 e 1990 aconteceu uma modificação global, social, e, em certo sentido, um avanço da modernidade, que tornou o mundo mais fluido e mais complexo. Ao mesmo tempo, houve uma derrota global da esquerda. E a confluência das duas coisas tornou o cenário mais complicado para os movimentos emancipatórios. Juntou-se a isso uma ofensiva forte do neoliberalismo, que tinha resposta própria vinculada ao capital financeiro e à crise da modernidade. A América Latina conseguiu, num cenário muito adverso, avançar no que se caracterizou como um giro à esquerda, que implicou a ascensão do PT no Brasil, com o MAS (Movimento al Socialismo) na Bolívia, o Kirchnerismo na Argentina, o Correa no Equador, no Uruguai a Frente Ampla, uma série de avanços interessantes, embora muito limitados na América Latina, a contrapeso do que vinha acontecendo no restante do mundo, onde havia avanço acentuado da direita, particularmente após o declínio da União Soviética. O momento que estamos vivendo é mais complicado, porque esses projetos da esquerda não só enfrentaram resistência dos conservadores como têm dificuldades para avançar além do ponto importante para onde nos levaram. Houve um enfrentamento direto da pobreza, a questão social veio para o centro da discussão. Mas, por outro lado, a posição dos nossos países na divisão internacional do trabalho ficou congelada... Na verdade piorou, porque acentuamos o caráter primário-exportador das nossas indústrias, com apostas inclusive dos governos de centro-esquerda. Não avançamos muito além do que podemos chamar de social-liberalismo. Mais do que um uma superação do neoliberalismo, o que a gente tem são certos elementos que emprestam a ele uma face mais socialmente orientada, seja em políticas focalizadas de combate à pobreza, sem que as políticas universais de saúde, educação, tenham sido efetivamente desenvolvidas. E houve uma coalizão meio esquisita, que mantinha a estrutura econômica, o cerne da política neoliberal, mas permitia a ascensão social das classes mais populares através dessas políticas mais focalizadas.
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Esse movimento é fruto de um desencanto com os governos de esquerda?
Acho que é mais o seguinte: houve transformações significativas, a esquerda conseguiu enfrentar a questão da pobreza e pôr a questão social no centro da agenda dos países latino-americanos. E aí, de um lado, tem uma certa limitação dessas políticas, porque não se conseguiu avançar além disso. A esquerda ficou refém do seu próprio pensamento limitado. E as pessoas têm reivindicações maiores em relação às políticas sociais e as suas possibilidades e trajetórias de vida. O que a direita está oferecendo agora é uma solução pseudodemocrática e que volta, de certa maneira, ao mercado como uma solução. A esquerda tem que voltar a pensar o que oferece aos jovens, quais são as soluções. Não é tanto que haja um cansaço da população com a esquerda, acho que é mais um horizonte curto que esse giro à esquerda levava consigo: ele era portador de modificações relevantes na área social, mas não conseguiu oferecer uma perspectiva civilizatória distinta.
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No Brasil temos um contexto de denúncias, corrupção...
O PT teve - e tem - um papel fundamental na história brasileira, mas houve evidentemente equívocos, do ponto de vista ético, financeiro, vinculado ao financiamento de campanhas. Também houve problemas mais amplos, uma certa reificação do Estado como portador da mudança social sem apostar na população como um elemento mobilizador e sem romper efetivamente com o social-liberalismo, sem oferecer um horizonte mais forte de transformação. Isso complicou sobretudo nos últimos quatro anos o horizonte da esquerda brasileira. E isso vai entrar no centro da nossa discussão. O projeto do lulismo efetivamente se esgotou. Está na hora de criar uma nova agenda, novas coalizões. Está em curso uma certa rearticulação da própria esquerda. Vai ser um processo bem complicado, imagino. Mas já começou a acontecer. Vai levar alguns anos. No Brasil é muito marcado esse ciclo democrático, que começou com a resistência à ditatura, em meados dos anos 1970 e se estendeu até o primeiro governo Dilma, mas se esgotou. Essa hegemonia absoluta do PT na esquerda brasileira provavelmente também se esgotou. Então a gente está vivendo um momento de transição muito confuso, não sabe para onde está indo. E isso cria muita instabilidade, incerteza, e claramente está vinculada à falta de projetos, seja da esquerda seja da direita, que está batendo cabeça. É um momento em que os elementos mórbidos do sistema político tomam à frente, emergem com muita força, exatamente porque as forças que podem renovar a sociedade e o Estado estão muito paralisadas, sem saber para onde ir.
Do ponto de vista da sociedade e dos movimentos, houve avanços?
Do ponto de vista dos movimentos há uma transformação, porque os jovens hoje acentuam muito a questão da autonomia dos movimentos, às vezes até de forma exagerada, e tendem a estabelecer uma relação diferente com os partidos políticos, não querem ser tão controlados pelos partidos, são mais horizontais. Isso tem elementos muito positivos, que é uma democratização dos movimentos, mas temos que ter cuidado para não criar uma fratura absoluta entre movimentos e partidos, porque não ajuda em nada. Tanto os partidos têm que aprender a lidar com esses movimentos, como os movimentos precisam amadurecer para não rejeitar a política institucional como se fosse sempre algo demoníaco e negativo. Temos que trabalhar para criar um novo encontro entre partidos e sociedade.
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O retorno dos movimentos de rua é um sinal de que a juventude hoje está menos apática?
Estamos começando um novo ciclo. 2013 acho que é o começo, um começo muito atabalhoado, de um novo ciclo político. Ele pode tomar qualquer direção, mas está em processo. Nesse sentido, a esquerda tem uma enorme responsabilidade de saber dialogar, inventar uma nova forma de forma de criar pontes, e propor uma nova agenda que vai incluir temas como o feminismo, o meio-ambiente, a democracia e a participação, a questão da saúde e da educação. Agora, como se reconstrói uma agenda é uma coisa que vai passar pela política, porque a sociedade sozinha, particularmente quando os movimentos se mostram mais fragmentados, não tem como dar uma resposta mais orgânica a esse novo ciclo.
Vai depender de quem conseguir capitalizar isso...
Exatamente. Tem o próprio PT aí, a rede surgindo, o PSOL... E a direita também, vai se rearticular. Eles não vão ficar parados. Não sabem o que fazer hoje, mas vão buscar dar respostas a essa nova conjuntura. A gente está vivendo um momento muito dinâmico, por isso que é tão difícil entender ele. As formas antigas estão morrendo lentamente, e as formas novas estão demorando para emergir. Por isso que tem tanta morbidez também porque as coisas positivas novas ainda não apareceram, então o velho e podre fica como segregando ácidos que envenenam a nossa atmosfera. Hoje também está se colocando uma nova situação, a sustentabilidade é um tema muito importante e galvaniza os jovens. As esquerdas latino-americanas não conseguem efetivamente entender isso, porque tendem a voltar a um neodesenvolvimentismo com cheiro dos anos 1950. O fracasso da ideia de que o Pré-Sal ia resolver todos os nossos problemas é revelador disso, dessa limitação do pensamento desenvolvimentismo da esquerda. O tema da relação com a natureza tem sido mal trabalhado pela esquerda latino-americana, e isso vai voltar com muito mais centralidade, porque é um caminho fundamental para os movimentos progressistas e emancipatórios voltarem a crescer.
Quais as perspectivas?
A esquerda sofreu uma derrota enorme no final do século 20, mas particularmente na América Latina os avanços da América Latina são inegáveis. Agora chegamos a um certo impasse: a esquerda pode ser totalmente derrotada, se não souber se renovar, mas também pode se reinventar e avançar de novo. Isso significa não ser arrogante, em muitos casos deixar de ser arrogante, ouvir a sociedade, os intelectuais, e estabelecer um novo tipo de diálogo também, porque a esquerda às vezes vai se fechando e tem dificuldade de escutar, se fecha nos seus aparelhos de poder, que acho que é o que aconteceu nos últimos anos na América Latina. E vai perdendo o rumo, achando que já sabe tudo. E a culpa é sempre dos outros, sem ser capaz de olhar para si mesma.