Os primeiros dias de janeiro são de cidade vazia. Chegar aos lugares é fácil. Sobra tempo para perceber os detalhes do trajeto que, na loucura do ano, acabam grudando à rotina a ponto de parecer normal. Da janela do ônibus, percebo que o Monumento aos Açorianos, do outro lado da Ponte de Pedra, já não possui mais aquela tela de galinheiro que servia de cachorródromo. Mais do que eventual motel de cachorro, mendigo, e hipster em noite de festa na rua, a obra é uma homenagem à chegada dos sessenta casais de açorianos que povoaram a cidade no século 18. Medindo 24 metros de comprimento por 17 de altura, o monumento foi inaugurado em 26 de março de 1974. Assinada pelo artista plástico Carlos Tenius, lembra uma caravela, composta de corpos humanos entrelaçados, tendo à frente uma figura alada. No monumento está escrito: "Jamais sonhariam aqueles casais açorianos, que da semente que lançavam ao solo nasceria o esplendor desta cidade."
O verão traz minha amiga de volta ao Porto Alegre. Vem para sentir calor. Otimista, pede para revisitar os lugares onde foi feliz, onde se perdeu e onde, agora, pretende se reencontrar. Aviso que a Ponte de Pedra virou casa de uns malucos que vivem ali embaixo e que não é legal ela caminhar sozinha em volta do lago que agora é um banhado imundo e fedorento. Não que Porto Alegre tenha se transformado em uma terra de ninguém, ela só não é mais nossa. Não que Porto Alegre tenha sido vendida, apenas vive um processo de sucateamento para custar mais barato.
Atravessamos a Ponte cientes de que tudo pode piorar. Se até o Bowie morreu, é possível que, no próximo verão, já nem mesmo sobre as pedras poderemos caminhar. Notamos que alguma coisa foi erguida no gramado, quebrando a paisagem antes limpa entre o Monumento aos Açorianos e o Centro Administrativo. Dentro do triângulo imaginário formado pelo prédio pista de skate, o monumento enferrujado e a histórica Ponte, um estranho agora é o novo "para sempre" no cartão-postal. Atravessamos as duas faixas da Perimetral para ver do que se trata. Ela morrendo de medo, eu morrendo de sol. O novo elemento da paisagem é o tímido eloquente monumento ao Batalhão Suez. A obra, assinada por não sei quem, lembra os 1,5 mil soldados gaúchos enviados ao Oriente Médio em missão da ONU, a fim de instaurar a impossível paz entre os egípcios que lá viviam e os israelenses que por lá chegaram. Minha amiga, acostumada a ver tudo piorar na cidade dos relógios parados, apostou que em menos de dois meses todo aquele aço inoxidável com o nome dos heróis de guerra terá sido roubado. Preferi não arriscar palpite algum.
Decididos a tentar fugir da realidade, optamos pelo cinema. Eu, querendo ver Carol no Guion, ela querendo ver qualquer coisa no Capitólio. A reinauguração do antigo cinema é um sopro de vida na cidade. O prédio, localizado na esquina da Borges com a Demétrio, é a vitória da arte sobre a espera. Chegamos à porta orgulhosos de Porto Alegre, mas, ao invés de cartazes e horários de filmes, nos deparamos com a triste constatação de não haver sequer um projecionista no mais bonito dos nossos cinemas. Nas férias daqueles que não irão à praia, nem o Capitólio estará aberto.
Desistimos do Centro Histórico e seguimos pela Avenida Ipiranga, onde, assim como no Largo dos Açorianos, mais um monumento militar acaba de ganhar espaço. Quase na esquina com a Salvador França, um horrendo tanque de guerra agora "enfeita" a cidade. Desisto de olhar para fora da janela do ônibus. Desistimos. O vandalismo, definitivamente, tomou conta de Porto Alegre. Entendo minha amiga que deseja nunca mais voltar. Não fosse eu daqui, também não voltaria.
*Ismael Caneppele escreve mensalmente para o Caderno PrOA.
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