O difícil ano de 2015 tentava sair de cena sem vergonhas maiores que as prisões do amigo e compadre de Lula, José Carlos Bumlai, e do senador petista e líder do governo Dilma Rousseff no senado, Delcídio Amaral (PT - MS). Tentava, mas não conseguiu. Fracassadas as barganhas entre governo e presidente da Câmara (Eduardo Cunha) para um acordão, o vilão favorito do PT acolheu o pedido de impeachment da presidente da República apresentado pelos juristas Miguel Reale Jr. e Hélio Bicudo. Pouco tempo depois, os luminares da esquerda universitária brasileira estavam a postos, disfarçando de preocupação institucional e democrática seu apego sentimental e intelectual pelo regime petista. Em abaixo-assinado, acusam o processo de impeachment de servir a "propósitos ilegítimos", vinculam (especialmente em declarações individuais) o impeachment a Eduardo Cunha (o que é falso) e não se vexam mesmo em falar de "luta de classes" e de "golpe à democracia" (o que é uma impostura).
No entanto, basta examinar algumas das estrelas articuladoras desse abaixo-assinado (não por acaso habituados a vilipendiar toda forma de crítica ao petismo) para termos uma boa ideia de seus verdadeiros compromissos. Por exemplo, o filósofo e cientista social Marcos Nobre, professor da Unicamp, teve a desfaçatez de afirmar recentemente, no programa Diálogos com Mário Sérgio Conti, que "no Brasil, impeachment está ligado a atos de corrupção" e que cogitar um processo de impeachment "por pedaladas fiscais é um absurdo". Nobre, irmão mais novo do advogado de defesa de Eduardo Cunha, mentiu duas vezes. Primeiro ao fazer passar por normalidade jurídica e constitucional uma esdrúxula convicção sua a serviço do petismo - a de que o impeachment só deve ocorrer quando houver corrupção pessoal do presidente da República - e depois ao transformar aquilo que é, de fato, a normalidade jurídica e constitucional vigente no Brasil - os crimes contra a Lei de Responsabilidade Fiscal - em um "absurdo". Novamente, a serviço do petismo, escusado dizer. É esse o compromisso do professor Marcos Nobre com a democracia e com as instituições democráticas do país?
Outra emblemática figura do descaso com a democracia e com o combate a corrupção a figurar na lista (e articulá-la, na verdade) é o cientista social e professor da USP André Singer. Ao longo de 2015, comprovou-se que nunca deixou de exercer a atividade em que realizou sua verdadeira natureza, a de porta-voz de Luiz Inácio Lula da Silva e do petismo (ainda que afete um senso crítico que não dura meia coluna de jornal). Depois de ter passado o ano a referir-se aos movimentos oposicionistas e pró-impeachment invariavelmente como "golpistas" em suas colunas na Folha de S. Paulo e a responsabilizar o "neoliberalismo" do ex-ministro da fazenda Joaquim Levy e a Operação Lava-Jato pelas dificuldades do país, Singer fechou o ano com chave de ouro.
Em longo ensaio para a Revista Piauí (O Lulismo nas Cordas), reúne seus surtos paranoicos e antidemocráticos em uma sequência de tirar o fôlego: a Justiça brasileira (leia-se a Operação Lava-Jato) é o PJ ("Partido da Justiça") - mais importante partido de oposição, segundo o acadêmico e porta-voz do lulismo; Sérgio Moro é um obsessivo que quer caçar Lula, dando-lhe o mesmo fim que Bettino Craxi (o corrupto líder socialista italiano que foi obrigado a fugir do país depois da bem sucedida operação Mãos Limpas); e, last but not least, incapaz de disfarçar seu desprezo pelas instituições democráticas e jurídicas do Brasil, Singer refere-se aos jovens procuradores da Lava-Jato pejorativamente como os ragazzini (os "rapazinhos", os "garotinhos") do Partido da Justiça.
É difícil imaginar circunstância política em que nomes com essa ficha corrida ideológica e partidária, com esse histórico de desinteresse sistemático e de ataque explícito e constante aos valores democráticos possam aparecer como defensores da "democracia, do Estado de Direito e da República", como pretendem os tais abaixo-assinados. É possível que o fato de nossa vida universitária e intelectual funcionar como um circuito ideologicamente fechado explique a recorrência de posturas como essas. Não é admissível que essa postura - substituir o pensamento crítico pela vassalagem partidária, o compromisso com os fatos publicamente verificáveis pelo cinismo da distorção doutrinária - contamine o necessário debate, a urgente reflexão que 2016 exigirá de todos nós: que Brasil, que democracia, que justiça queremos? Aqueles abaixo-assinados nada têm a contribuir para tal reflexão.
*Eduardo Wolf escreve mensalmente no caderno PrOA.
Leia mais textos de Eduardo Wolf