* Artista visual, professora do Instituto de Artes da UFRGS
É difícil escrever sobre um amor. Corro o risco de romantizar as emoções, e isso é a mesma coisa que pulverizar um repelente sobre elas. Daí, espantamos os leitores.
Eu já havia desenhado David algumas vezes, apropriando-me de sua figura como personagem, mas ainda não tinha escrito sobre ele. E por isso aceitei, um pouco tímida, o convite que me fizeram. Contudo, será preciso esconder-me da pesquisadora e acadêmica que hoje sou, e invocar a fã. Eu nunca pesquisei sobre David Bowie, e não é agora que vou produzir um ensaio pomposo sobre o homem e sua obra. Imagino que ele já foi ou está sendo assunto de alguma tese ou de dissertação em alguma universidade no mundo. E se ainda não foi, certamente será.
Para vocês eu prefiro contar essa história: David caiu na minha casa pela televisão, quando eu tinha 11 ou 12 anos. Isso aconteceu através do Fantástico, o melhor programa das antigas noites de domingo sem canais a cabo, internet ou celulares. Àquela altura dos anos de 1970, já podíamos assisti-lo em cores em nosso aparelho recentemente comprado. Assim, nunca esqueci o terninho azul celeste e o duplo tom das íris dos seus olhos.
- Mãe, é um homem ou uma mulher?
Não lembro da resposta, se é que minha mãe me deu uma.
Pois é, David caiu ali, e evaporou logo depois de terminada a canção, surgindo em seu lugar Cid Moreira, Sérgio Chapelin ou algum outro jornalista, ator ou atriz convidado da produção. Teriam eles comentado algo após o clipe? Explicado o fenômeno?
Não importa; na minha cabeça, David fez o maior sentido, até porque, como ele não podia saber, eu já curtia Secos e Molhados. Contudo, se a voz era feminina, o corpo cabeludo de Ney Matogrosso entregava o jogo. Já David, ah, esse não, com seu corpo etéreo e ambíguo, seu rosto translúcido (resultado de um tape ruim, como vim a saber depois), maquiado com um refinamento cujo estilo outros tentaram imitar sem conseguir (quem lembra agora de Adam and the Ants?). Uma aparição que não podia ser identificada com realidade humana alguma, suspensa em um espaço de luz. Até a música, atravessada por uma voz um tanto irregular e esganiçada na época, pareceu bizarra e por isso mesmo, fascinante aos meus ouvidos acostumados às trilhas previsíveis selecionadas pelas rádios.
A sua figura reforçou a lição já iniciada com Ney: homens não necessariamente precisam ser ou parecer homens e mulheres não necessariamente precisam ser ou parecer mulheres. Outra lição, aprendida na mesma hora: a música pop que se faz e que se escuta em Marte podia ser bem melhor do que as que me permitiam acesso (com exceção de Secos e Molhados). A primeira me ajudou a desenvolver um método antibullying; a segunda deu trabalho pois minha peregrinação musical jamais terminaria e até hoje sou uma ouvinte inquieta (lembrando que, dos anos 1970 ao começo dos anos 1990, sem internet, sem importação acessível, sem grana para viajar, peregrinar musicalmente significava uma romaria semanal às poucas lojas de LPs que vendiam raros e importados, visitar o primo mais velho cuja discoteca era um verdadeiro museu sonoro do rock e do blues e seduzir locutores de rádio para que gravassem para mim, numa fita cassete, aquela banda desconhecida de Londres.)
10 momentos de David Bowie
Nessa peregrinação, eu me perdi e não soube que Ziggy Stardust tornara-se um duque e escondera-se em Berlim. Ninguém que eu conhecesse nos últimos anos de ditadura ousava declarar preferência pelo glitter espalhafatoso de suas roupas. Bowie perturbava demais com sua energia lasciva, endereçada a qualquer sexo. Ele não era másculo o suficiente, nem feminino o bastante. Não era carnavalesco a ponto de nos divertir, mas indiscreto demais para que pudéssemos apreciá-lo com moderação. De botas prateadas de cano alto e cabelo laranja cortado de um jeito esquisito, parecia um clown patético e melancólico. Difícil gostar dele numa idade em que se tem não poucas dúvidas a respeito de si mesma.
Assim, viajei em zepelins até o lado escuro da lua e percorri a agreste melodia nordestina brasileira. Até que, em meados de 1980, me vi dançando Lets Dance e Modern Love. A voz parecia familiar, embora mais grave e profunda. Mas só retomei a conexão ao revê-lo nos videoclipes. O clown substituíra o terninho mod por ombreiras enormes e calças bag. Mas o camaleão havia concordado apenas em parte tornar-se humano: a libidinosidade dionisíaca transmutou-se em sensualidade apolínea e elegante. Eu me apaixonei outra vez!
Desde então, venho recuperando a distância e preenchendo lacunas. Não tenho todos os seus álbuns, nem coleciono quinquilharias impressas com a imagem do ladino insano, seja de olhos abertos ou fechados. Amo David reconhecendo e aceitando o seu melhor e o seu pior. Saber que ele existiu me faz bem. Como veem, deixo muito a desejar em termos de comportamento fã.
Na visita à exposição em 2014, eu parei diante do terninho azul celeste, meio esverdeado pelo tempo. Fiquei com vontade de vesti-lo.