Presença constante no Fórum Social Mundial, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, voltará à Capital neste ano - e receberá o Título de Cidadão de Porto Alegre no dia 20, na Câmara de Vereadores.
O senhor esteve presente desde a primeira edição do Fórum Social Mundial. Na sua avaliação, o que mais mudou nesses 15 anos?
Mudou a consciência de que, de uma ou outra forma, somos cidadãos e cidadãs globais. Temos uma consciência mais forte de que vivemos no mesmo planeta e que, se um outro mundo é possível, ele tem de ser partilhado com todos e também com a natureza. Facilitou-se a constituição de governos progressistas na América Latina que possibilitaram uma redistribuição de renda sem precedentes donde emergiu uma nova classe média. Infelizmente, o modo como isso foi feito talvez não permita a sustentabilidade desta enorme conquista social. Criaram-se condições para que a democracia representativa entrasse no imaginário popular e se deixasse fortalecer pela democracia participativa, um processo em que Porto Alegre teve um papel pioneiro com a instituição do orçamento participativo a partir de 1989.
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O slogan do FSM propõe "um outro mundo possível". Depois de 15 anos, já temos sinais desse "outro mundo". Qual o maior desafio atual?
O FSM foi uma iniciativa extraordinária, e os gaúchos devem estar orgulhosos dela. Consistiu em juntar tantos grupos dos mais diferentes países e reuni-los apenas porque lutam por um mundo melhor sem cuidar especificamente de saber como será esse mundo, se será socialista ou outra coisa. Foi uma iniciativa de inclusão sem precedentes na história dos que lutam pela reforma social. A aspiração de um mundo melhor está viva, e a prova está no modo como tanta gente se impacienta hoje com a lentidão ou a dificuldade desse projeto e se manifesta na rua. Os cidadãos são hoje menos passivos, mais exigentes. Não aceitam, por exemplo, que o transporte público continue sequestrado por interesses privados com forte influência no sistema político e muito menos que o SUS continue subfinanciado para que ao capital financeiro não falte a rentabilidade. O maior desafio atual é que os partidos políticos estejam à altura das novas exigências dos cidadãos. E que a democracia se saiba defender daqueles que sempre a usaram e só enquanto ela serve os seus interesses.
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Na sua primeira conferência, em 2001, o senhor defendeu a construção de uma nova sociedade civil organizada, baseada na solidariedade. O senhor acha que houve avanços nesta direção?
Sem dúvida que nestes 15 anos a sociedade civil ganhou uma nova voz, mas as formas de organização não foram as que prevíramos. Os partidos e os movimentos sociais não foram capazes de enquadrar as novas exigências da cidadania e por isso ela foi para a rua convencida de que o único espaço público não controlado pelos mercados financeiros e pelo dinheiro eram as ruas e as praças. Hoje, num período de maior agressividade do neoliberalismo que parece estar de regresso ao continente (depois de uma década "anómala"), os movimentos sociais estão a baixar a escala das suas ações, da escala nacional e global para a escala local. Mas só na aparência, porque esta nova escala local está bem consciente do contexto global e nacional em que ocorre. Por exemplo, os povos indígenas, os camponeses sem terra e os afrodescendentes, os desempregados sabem bem que quem os oprime é uma mistura complexa de forças nacionais e globais.
Nas primeiras edições, havia um discurso forte contra globalização e o neoliberalismo. Agora a programação parece mais difusa e fragmentada. Como o senhor vê essa fragmentação?
Nas primeiras edições, o discurso era forte e unido na luta contra a globalização neoliberal e a favor de uma globalização contra-hegemônica, a partir das classes populares e suas organizações. Quanto ao resto, já havia uma fragmentação entre os que lutavam contra o neoliberalismo e, portanto, a favor de um capitalismo mais civilizado, de rosto humano, e aqueles que lutavam contra o capitalismo, o colonialismo, o racismo, o patriarcado. A fragmentação é o lado negativo da diversidade que o FSM tanto celebrou, uma conquista positiva que deve permanecer.
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Depois de uma guinada à esquerda nas últimas décadas, América Latina e da Europa têm assistido a um crescimento da direita. Como o senhor lê esse movimento? Há um desencanto com os governos de esquerda?
Temos de entrar com três explicações complementares. Primeiro, o modelo de desenvolvimento em que assentaram os governos progressistas e suas políticas sociais era o extrativista, exploração sem precedentes das matérias primas e da agricultura industrial impulsionada pelo crescimento da China. Esse modelo esgotou-se, pois, como sabemos da história, os booms das commodities não duram mais que 10 anos. O desastre social e ambiental que causaram ainda está por avaliar. Segundo, alguns dos governos progressistas, como, por exemplo, o brasileiro, procuraram governar à moda antiga para realizar uma política nova. E isso não é possível, como demonstra o fracasso do presidencialismo de coalizão. Nunca entendi por que a reforma política não foi a prioridade das prioridades. Terceiro, os governos progressistas prosperaram num momento em que o big brother do norte estava distraído e absorvido pela guerra no Oriente Médio. O golpe nas Honduras em 2009 foi o primeiro sinal de que o imperialismo norte-americano estava de volta ao seu quintal. Tem hoje uma tática nova: apoiar forças que se afirmem como democráticas desde que estejam contra os governos que os EUA consideram hostis aos seus interesses. Os dois primeiros ensaios em países grandes tiveram êxito: Venezuela e Argentina.